A crescente população de idosos tem trazido novos desafios para a área da Justiça e de proteção dos direitos humanos no Brasil. A demanda judicial envolvendo pessoas com mais de 60 anos aumentou, mas a estrutura do Poder Público ainda não acompanha o ritmo das demandas.
Na área da justiça, o Estatuto do Idoso, que completou 15 anos esta semana, estabelece que processos envolvendo violação de direitos de idosos ou que tenham pessoas com mais de 60 anos como parte envolvida devem ter prioridade na tramitação. Contudo, o sistema judiciário ainda está se adaptando à nova realidade.
Levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostra que, de 2015 a 2017, foram iniciados em tribunais de diferentes instâncias em todo o país pelo menos 29,1 mil processos com o assunto “crimes previstos no Estatuto do Idoso”. De 2015 para 2016, houve aumento de quase 80% no volume de processos, e para 2017, o aumento foi de 25%.
O CNJ explica que a flutuação na série histórica pode estar relacionada à categorização do processo no tribunal e não necessariamente a uma variação no número de ações ingressadas, uma vez que pode haver mais processos que não foram identificados como casos de discriminação por motivo de idade. Não há informações sobre as decisões dos processos.
Na ponta, a demanda é bem maior. Desde 2011, quando foi iniciado o serviço do Disque 100, foram registradas cerca de 200 mil denúncias de violações de direitos dos idosos, segundo balanço do Ministério dos Direitos Humanos. A maioria dos relatos se refere a negligência, violências financeira e psicológica. Nem todos, entretanto, ingressam na área judicial.
Para investigar e encaminhar as denúncias, alguns estados têm delegacias especializadas do idoso. É o caso de Minas Gerais, Tocantins, São Paulo, Goiás e Bahia, por exemplo. As delegacias recebem as denúncias pessoalmente ou de forma anônima e muitas delas prestam serviços de assistência social.
Como forma de garantir a prioridade no acesso à Justiça, o Estatuto do Idoso prevê que “o Poder Público poderá criar varas especializadas e exclusivas do idoso”, mas poucos estados conseguiram montar uma estrutura especializada unicamente para atender os idosos.
Em 2007, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou uma recomendação para que os tribunais de todo o país adotem medidas para dar prioridade a processos e procedimentos que tenham pessoas idosas como parte, em qualquer instância da Justiça.
Mais de dez anos depois, o banco de dados alimentado pelos tribunais aponta a existência de apenas uma vara especializada, localizada em Feira de Santana, na Bahia. O total de varas com competência para julgar processos relacionados aos direitos dos idosos, entretanto, é de 179 em todo o país, segundo o CNJ.
“Algumas vezes a gente recebe reclamações das pessoas pedindo para o Ministério Público uma providência entendendo que o processo está demorando muito ou que não está recebendo a prioridade devida”, afirma Cláudia Beré, promotora de Justiça do Ministério Público de São Paulo.
Integrante da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público em Defesa dos Idosos e de Pessoas com Deficiência (Ampid), a promotora disse que o Poder Judiciário em São Paulo criou uma vara criminal especializada para vítimas vulneráveis, entre elas idosos. Mas, na área cível, a capital paulista, que reúne grande parte dos processos do país, ainda não criou uma vara especializada.
“Só meia dúzia de comarcas no estado de São Paulo têm a vara especializada do idoso. É um problema porque o idoso não tem suas causas julgadas por um juiz especializado, principalmente nos assuntos que se referem ao envelhecimento”, afirma.
O CNJ ressalta que os tribunais de alguns estados, apesar de não terem varas exclusivas, desenvolvem ações específicas para a população acima de 60 anos, como é o caso da Central Judicial do Idoso, serviço interdisciplinar criado no Distrito Federal para orientar pessoas idosas e facilitar o atendimento que demanda atuação de diferentes instituições, como Ministério Público, Defensoria Pública e Tribunal de Justiça.
Aos 64 anos, Neuza Maria Fátima de Moraes decidiu acionar a Justiça para resolver um problema de família. Neuza precisa do inventário do lote onde mora para receber sua parte da herança da família e comprar outra casa. Ela tem urgência porque tem sido vítima de violência por um dos parentes que mora no mesmo lote.
“Ele me agride fisicamente, já fomos até para a delegacia, a polícia já foi várias vezes lá. Ele e a mulher dele entraram lá com pedaço de pau para me matar”, relatou Neuza à Agência Brasil.
Este ano, ela conheceu a Central Judicial do Idoso em Brasília por indicação de uma amiga que é assistente social. Neuza mora com um dos filhos, uma neta adulta, uma bisneta bebê e ainda tem a guarda de quatro netos, de 8 a 11 anos, porque os pais são dependentes químicos.
Ela sustenta a casa com a renda de R$ 900 que ganha passando roupa. Com apenas 13 anos de contribuição ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), Neuza ainda não conseguiu aposentar. “Estou com a guarda dessas crianças e meu irmão não aceita as crianças no lote. Está difícil demais conviver no lugar. Meu objetivo é sair de lá, vender e comprar um canto para mim”, relata Neuza.
A desavença familiar e as dificuldades para manter as crianças têm agravado os problemas de saúde de Neuza. “Eu tenho problema de fibromialgia e tive uma depressão profunda que eu achei que fosse morrer. Eu vivo lutando para cuidar dessas crianças e é uma guerra muito grande”, conta.
A Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa, vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos, lembra que o artigo 4º do Estatuto do Idoso determina que todos são obrigados a prevenir a ameaça ou violação dos direitos do idoso. Aqueles que não cumprirem com esse dever serão responsabilizados, sejam pessoas físicas ou jurídicas, empresas, instituições ou entidades governamentais.
“O grande avanço do Estatuto do Idoso está na previsão do estabelecimento de crimes e sanções administrativas para o não cumprimento dos ditames legais. No caso da violação destes ditames, caberá ao Ministério Público agir para a garantia dos direitos”, destaca o secretário nacional dos Direitos da Pessoa Idosa, Rogério Ulson.
Ulson ressalta ainda que esta responsabilidade não é apenas criminal, mas também civil e lembra ainda que todo cidadão tem o dever de comunicar à autoridade competente qualquer forma de violação que tenha testemunhado ou de que tenha conhecimento.
Na promotoria do Idoso do Ministério Público de São Paulo, tem crescido o número de atendimentos de casos de violação. “A gente trabalha com vários assuntos, um deles, casos individuais de idosos em situações de risco. A gente recebe muitas denúncias que nos chegam pelo Disque 100, por email, por pessoas que comparecem aqui pra serem atendidas sobre idosos em situação de risco, negligência, violência psicológica, violência financeira, idosos acumuladores, idosos com transtorno mental”, explica a promotora Cláudia Beré.
A promotoria também fiscaliza as chamadas Instituições de Longa Permanência, conhecidas como abrigos de idosos, e trabalha com questões coletivas que atingem todos os idosos como políticas públicas e transporte, planos de saúde e atendimento em hospitais especializados.
Nas ações de âmbito federal, a demanda também é crescente. Na Defensoria Pública da União (DPU), no ano passado, foram registradas mais 473 mil ações cíveis, previdenciárias, trabalhistas e de tutela de direitos humanos. O volume é 30% maior do que o registrado há cinco anos pela DPU.
Mais da metade dos processos correspondem a questões relacionadas à Previdência ou de violações na área da saúde, áreas que têm como público majoritário pessoas com mais de 60 anos. Um dos desafios é garantir a celeridade dos processos para que o idoso tenha tempo de desfrutar do resultado, caso positivo em seu favor.
Segundo o defensor público federal, Jorge Medeiros de Lima, a tramitação de um processo de Benefício de Prestação Continuada (BPC), por exemplo, leva em média de um a dois anos. “É muito tempo para um idoso pobre, isso em não havendo recurso. Se houver recurso, pode demorar três, quatro até cinco anos”, explica.
O defensor esclarece ainda que o idoso tem direito a receber os retroativos. Se a pessoa idosa ganhar em primeira instância, o juiz pode antecipar uma liminar para garantir que o beneficiado comece a receber os benefícios. Mas, se houver recurso, o valor do retroativo só é liberado depois que todos os recursos se esgotam.
“É bem comum o idoso não ver [o fim do processo] e o dinheiro ficar só para os herdeiros. Não vê os retroativos. Se ganhar na primeira instância, o juiz costuma dar uma liminar para a pessoa já ir recebendo, mas os atrasados, é bem comum de a pessoa vir a óbito antes do fim do prazo dos recursos”, relata.
Lima ressalta que, com o envelhecimento da população, a demanda de atendimento na área previdenciária deve continuar aumentando e os órgãos da justiça, incluindo a Defensoria, terão o desafio de aumentar a estrutura para dar conta da nova demanda.
“A demanda tende a aumentar, já está aumentado e a dificuldade da defensoria é justamente a falta de pessoal, falta de defensores, de servidores. A Defensoria Pública da União não tem um quadro de carreira próprio, não tem uma quantidade de defensores que possa suprir esse crescente aumento. A demanda aumenta, mas a quantidade de servidores não”, comenta Lima.
Com informações Agencia Brasil