O Ministério da Saúde tenta doar parte dos cerca de 5 milhões de testes de Covid-19 encalhados em um armazém federal e que vencem a partir de abril. O governo planeja entregar ao Haiti 1 milhão desses exames, em uma operação tratada como ajuda humanitária, mas que pode reduzir o estoque e evitar mais desgaste à imagem do general Eduardo Pazuello, chefe da pasta. Outro lote foi oferecido a hospitais filantrópicos e Santas Casas, que devem recusar.

O ministério guardava 7,1 milhões de exames RT-PCR – o mais indicado para diagnosticar a doença -, e a maior parte (96%) teria de ir ao lixo entre dezembro e janeiro. O produto foi comprado por meio da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), por R$ 42 a unidade.

A validade original era de oito meses, mas foi estendida por mais quatro pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, com base em estudos da fabricante (a coreana Seegene). Até agora, 2,1 milhões de exames foram entregues, mas a gestão de Pazuello continua com dificuldade para consumir todo o estoque.

O processo de detecção exige a disponibilidade de cotonetes swab, tubos coletores, reagentes de extração do RNA e outros insumos que nem o Brasil conseguiu comprar em grande escala. O País patina para realizar testes no Sistema Único de Saúde (SUS) A meta era fechar 2020 com mais de 24 milhões de amostras analisadas, mas só cerca de 10,2 milhões de exames RT-PCR foram feitos na rede pública.

Mesmo os exames entregues aos Estados e municípios não foram totalmente consumidos, entre outras razões pela falta de todos os insumos para a análise. Além disso, o produto encalhado não é compatível com toda a rede pública de laboratórios.

Negociação

Depois de duas semanas de questionamentos, o Itamaraty e o Ministério da Saúde afirmaram que o governo haitiano pediu a doação dos testes. Não está claro se a quantidade ofertada foi proposta pelo Brasil ou pelo país caribenho. “A área da Saúde, por estar entre os temas prioritários para a reconstrução e a estabilização do Haiti, constitui um dos principais eixos da cooperação com o país, bem como é objeto de diálogo constante entre os países”, afirmou o Itamaraty. O ministério destaca que já enviou cem ventiladores pulmonares durante a pandemia ao país.

A Embaixada do Haiti no Brasil afirma que não “está a par” das conversas. O Estadão apurou que o diálogo está sendo feito entre o governo brasileiro e o Ministério da Saúde do Haiti. Uma equipe de Pazuello está em Porto Príncipe para negociar a entrega e avaliar se o país tem condições de receber o material.

O governo brasileiro não doará reagentes de extração e outros insumos. “Se os haitianos não tiverem como fazer as análises ou como realizar coletas, não será possível ao Brasil dar início à doação”, afirma o ministério, em nota. Auxiliares de Pazuello, reservadamente, negam que a ideia é empurrar ao país os exames prestes a vencer. Na nota, a pasta afirma ainda que avaliará a quantidade a ser doada – a reportagem apurou que se fala, hoje, em 1 milhão de exames.

Diante da oferta de testes do ministério, a Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas (CMB) já alertou as entidades sobre o risco de os estoques terminarem no lixo. “Dessa forma, recomendamos às instituições que pleitearem a doação dos mesmos que o façam com responsabilidade, para que não passemos a concentrar em nós e nas nossas instituições a responsabilidade pelo vencimento dos testes.”

Em nota, a CMB confirma que muitos hospitais devem rejeitar a proposta. “Os testes são necessários e bem-vindos, mas infelizmente nem todos os hospitais têm equipamentos compatíveis para atender às especificações técnicas de análise do material coletado e leitura dos resultados do teste PCR.”

Pressão

A negociação para a entrega dos exames ocorre no momento em que Pazuello está sob pressão e tenta evitar novos fracassos de logística. O general é investigado no Supremo Tribunal Federal (STF) por suposta omissão na ajuda ao Amazonas e precisou depor à Polícia Federal. Além disso, recebe críticas pela demora para comprar vacinas, pelo avanço da pandemia no País e por causa da aposta em medicamentos sem eficácia, como a cloroquina.

A revelação de que o ministério estocava exames prestes a vencer causou desgaste a Pazuello. O caso é esquadrinhado por órgãos de controle e o ministro Benjamin Zymler, do Tribunal de Contas da União (TCU), aponta irregularidades “preocupantes”. Outros ministros do TCU também criticaram a pasta. Em novembro, Bruno Dantas disse que o caso é “crime de lesa-pátria”. “Trata-se de menosprezo com a saúde da população.”

Como revelou o Estadão, a área técnica já alertava a gestão Pazuello desde maio de 2020 sobre o risco de os exames perderem a validade. E, quase um ano após a pandemia chegar ao Brasil, o Ministério da Saúde ainda negocia a compra de reagentes de extração de RNA.

Com informações Estadão Conteúdo