Um levantamento indica que o Brasil registrou no ano passado, 275.587 óbitos a mais que o previsto para 2020. Desse total, 220.469 foram vítimas da Covid-19, mas outras 55.117 pessoas morreram por outras doenças. As estatísticas indicam que, além das perdas pelo novo coronavírus, a crise sanitária causou mortes de quem poderia sobreviver em outra situação.
A pesquisa é baseada números do estudo Excesso de Óbitos no Brasil, da organização em saúde Vital Strategies, no painel do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). Em razão do isolamento social, necessário para frear o contágio pelo vírus, houve dificuldade de atender pacientes crônicos, realizar exames e fazer diagnósticos precoces de outras doenças graves.
A amplitude desse problema no sistema de saúde brasileiro assusta a população e preocupa médicos e especialistas em outras enfermidades — já há projeções de até 50 mil casos de câncer para 2021 por causa do abandono de tratamento ou atraso na identificação da enfermidade.
“A gente atribui isso, em parte, ao cancelamento ou adiamento dos procedimentos médicos que deveriam ter sido feitos, como exames”, afirma a coordenadora do estudo e professora da UFMG, Fatima Marinho.
As pessoas, de acordo com ela, têm receio de ir ao hospital com medo de se infectarem com o novo coronavírus. “Quando os pacientes chegam ao hospital, já estão em situação mais grave”.
A pesquisadora explica que o pico até dezembro ocorreu na semana epidemiológica 20, virada de maio para junho, com 33.569 mortes, frente as 23.727 esperadas conforme o balanço de anos anteriores — o aumento das mortes esperadas naquela semana foi de 46%.
Durante todo o ano, a linha da curva das mortes esteve acima da curva de dados projetados com base nas médias de anos anteriores.
CASOS DE CÂNCER
Agora, a preocupação de oncologistas que acompanham a pandemia é com projeções que apontam 50 mil novos casos de câncer que deixaram de ser detectados no ano passado devido à escassez de diagnósticos no período.
Segundo Daniela Dornelles Rosa, diretora da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC) e oncologista do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre, as consultas registraram forte queda. Apenas no centro de oncologia do hospital, 720 pacientes desistiram, além de mais 264 do centro de mama.
“Se formos computar com fevereiro e março são 3.436 desistências de consulta em três meses”, argumenta.
A médica afirma que, além do câncer, existe preocupação com outros tipos de doenças, como as cardiovasculares. “Existem publicações mostrando que há, sim, um maior número de casos de pacientes que podem, inclusive, acabar morrendo em casa”.
PROJEÇÕES DE CASOS DE CÂNCER
Conforme estatísticas de 2019, a projeção nacional de novos casos de câncer apontava para a ocorrência de 625 mil diagnósticos anuais no triênio 2020-2022. Daniela Rosa frisa a necessidade de as pessoas procurarem o médico para identificar a doença no estágio que ainda permite a cura.
“Nossa recomendação é que não se cancelem exames”, pontua.
A advogada Mariana Peirano, 40 anos, descobriu um câncer em outubro e passou por cirurgia em novembro. Segundo ela, os protocolos do hospital a deixaram segura. “Convivi lá com pessoas na químio que sentiram o nódulo no seio e ficaram com medo de fazer o exame. Quando foram fazer, descobriram que já estavam com metástase. Vamos lembrar que é uma doença em que meses podem fazer diferença”.
O cirurgião oncológico Alexandre Ferreira de Oliveira, presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica (SBCO) não tem dúvidas do impacto da Covid-19 sobre as doenças crônicas. Ele destaca levantamento da Sociedade Brasileira de Radioterapia que mostra redução de 46% nas radioterapias para mama no País.
“Houve também queda de 47% na detecção de novos casos no Hospital AC Camargo, de São Paulo”, afirma.
São dados de pacientes de câncer de colorretal entre março e julho do ano passado, em comparação com o mesmo período de 2019.
Oliveira avalia que o principal problema é que as pessoas não estão fazendo os exames necessários para rastrear a doença. “O diagnóstico precoce é fundamental”, diz, salientando projeção existente no Reino Unido para este ano.
“Uma prospecção aponta que haverá 18 mil casos a mais de mortes por câncer neste ano devido à falta de diagnóstico precoce”, diz o médico. “O nosso medo é que as doenças crônicas matem mais do que o covid”, alerta.
CONSEQUÊNCIAS
O presidente da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil), Gustavo Renato Fiscarelli, aponta um “acréscimo absurdo” no número de óbitos. A entidade é parceira do grupo que trabalhou no estudo Excesso de Óbitos no Brasil, da Vital Strategies.
Ele explica que a média anual de óbitos, desde 2003, era de 1,1 milhão de pessoas. No ano passado, devido à pandemia, subiu para quase 1,5 milhão. “E aí fica claro que, mesmo somados os cerca de 250 mil da covid registrados até dezembro, há excesso de óbitos de pessoas que não tinham covid, mortos por outras doenças”.
Para ele, “isso é reflexo da covid, porque há o isolamento das pessoas, falta de tratamento,de leitos, hospitais lotados, abandono e adiamento de tratamentos regulares”, enumera.
“É uma situação gravíssima, porque há forte impacto direto e indireto da covid sobre o sistema de saúde, e isso vai provocar alteração até no perfil da população e na economia”.
A médica e presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC), Clarissa Mathias, indica que as pessoas têm deixado também de fazer controles essenciais para a saúde. “E isso aumenta os fatores de risco de adoecer. As pessoas estão dormindo mais, voltando a fumar, ganhando peso”, alerta.
Ela explica que os dados do ano passado apontam que mais de 74% dos profissionais entrevistados relataram ter tido ao menos um paciente que interrompeu ou adiou tratamentos por mais de um mês na pandemia. E que, para 22,5% dos oncologistas, houve obstáculos para a realização de exames. Só 1% disse não ter notado resistência aos procedimentos.
NÚMEROS EM REGIÕES
As regiões com mais excesso de mortalidade são Sudeste (38%), Nordeste (32%) e Norte (12%). O Centro-Oeste (10%) e o Sul (9%) tiveram menor impacto em 2020. As capitais foram mais duramente atingidas pelo excesso de óbitos, especialmente Manaus, Belém, São Luís, Fortaleza, Recife, Salvador, Rio e São Paulo.
“O Amazonas, com aumento de 52% das mortes esperadas, é o mais impressionante, mostrando extermínio de parte da população do Estado, que continuou em 2021”, afirma Fatima Marinho, coordenadora do grupo de estudos.
Ela destaca que o Estado de São Paulo é afetado pelo alto número de mortes, mas não tem o excesso de mortes encontrado, por exemplo, em Estados como Amazonas e Rio.
“São Paulo teve excesso de óbitos de 41.986, mas isso é 15%. No Rio, o excesso de mortes foi de 25%, acima da média nacional (22%). Já o Amazonas tem 52% de excesso de mortes”, explica. “E isso vai se repetir em 2021” alerta.
(*) Com informações Estadão Conteúdo