Em entrevista ao Jornal Folha de São Paulo, o candidato do PSOL à Presidência da República, Guilherme Boulos criticou o que chamou de velhas práticas políticas. Para Boulos, é “lamentável” se aliar com o Centrão “que na verdade é um direitão”. O recado é claro: Boulos fala do PT e de alianças regionais com aqueles que estiveram na proa do “golpe”: o impeachment de Dilma Rousseff.
Com 1% em pesquisas, o presidenciável do PSOL reitera sua defesa pelo direito de Lula ser candidato, mas põe em xeque a capacidade de dialogar com o povo de Fernando Haddad, apontado para substituir o ex-presidente preso como candidato do PT. “Por vezes falta, sim, a certos setores da esquerda a humildade de pisar no barro, escutar mais e doutrinar menos. Fica a dica.”
Boulos perdeu 8 kg desde que entrou na corrida. O que manteve foram os costumeiros ataques à elite “que acha que Bolsa Família é coisa de comunista”.
A polarização no Brasil, diz, infla a partir de um povo que teme: a violência, o desemprego, o futuro. Daí despontam “vigaristas que exploram o medo das pessoas”, agora um recado para Jair Bolsonaro (PSL). “O Brasil precisa não só de lideranças políticas para mudar, precisa de um psicanalista.”
Confira a entrevista completa com Guilherme Boulos
O senhor terminou seu primeiro ato de campanha na Bovespa, prometendo combater banqueiros, e sua militância entoava “eu não abro mão do presidente que faz ocupação”. Como um governo seu teria governabilidade com um discurso ameaçador para o status quo?
Se o mercado quer definir quem vai ser o presidente do Brasil, que o eleja no pregão da Bolsa de Valores e cancele a eleição. Enquanto houver um pingo de democracia aqui, é importante respeitar a vontade do povo. O sistema político brasileiro faliu. Esse modo de governar, de troca de votos no Congresso por ministérios, foi o que gerou a maior crise de representação da nossa história recente. Vamos governar com a maioria do povo, com plebiscitos, referendos, respeitando as instituições, dialogando com Congresso, buscando já nesta eleição algum grau de renovação no Congresso. Democracia não pode ser só apertar um botão a cada quatro anos. Não pode ser como o Big Brother, em que as pessoas decidem quem vai e quem fica, mas não decidem o que acontece dentro da casa.
Mas como pretende dialogar com o Congresso com plataformas que dificilmente passariam nele?
Ninguém na história abriu mão voluntariamente dos seus privilégios. Não acredito que o Congresso, ao menos com a composição atual, aprove pautas populares se não for pressionado pela sociedade. A ditadura militar no Brasil não acabou porque generais se reuniram numa sala e acharam que era hora de dar fim, mas porque milhões foram às ruas. Veja bem, a reforma trabalhista foi aprovada por um Congresso com grande influência de empresários e por um monte de deputado e senador que tem campanha eleitoral financiada por eles. Num referendo, acha que seria aprovada? Claro que não. Ouvimos num debate o Bolsonaro dizer o absurdo de que trabalhador tem que escolher entre direitos e emprego. Como é isso? Emprego sem 13º? Sem férias?
O senhor fala em governar com o povo. Milhões foram às ruas contra as reformas, ok, mas outros tantos contra o PT, por bandeiras distantes das suas. Como conciliar um país polarizado tratando rivais como “coxinhas”?
Se você falar, ‘há uma grande polarização política no Brasil’… Verdade. Agora, qual a novidade nisso? Ela existe há 500 anos. O Brasil foi um dos últimos países a abolir a escravidão, tem uma elite econômica que pensa com a cabeça da Casa Grande, que acha que o Bolsa Família é coisa de comunista. Num país onde o professor ganha R$ 2.000 e o Judiciário aprova para si um aumento pra R$ 40 mil, ora, não dá para não falar em polarização. Não é uma criação artificial da direita ou da esquerda. A forma de resolver a polarização não é jogando as diferenças para baixo do tapete, é enfrentando a brutal desigualdade que existe no país.
Mas como fazer isso sem alienar o outro lado? Os 20% de eleitores do Bolsonaro não são todos banqueiros.
Temos que quebrar preconceitos. O debate público está num nível muito baixo. Quando gente como o Bolsonaro, com sua fábrica de fake news, pauta temas de debate nacional, é sintoma de um problema sério. O Brasil precisa não só de lideranças políticas para mudar, precisa de um psicanalista. Eu, como alguém que se formou em psicanálise, me coloco como candidato também para lidar com os medos que se produzem, e o preconceito produzido para lidar com esses medos: da violência, do desemprego, do futuro. Gente que me diz: “Olha, há um tempo eu tinha certeza que meu filho ia viver melhor do que eu, hoje não sei como vai ser a semana que vem”. Quando tem um nível de insegurança tão grande, aparecem os vigaristas que exploram o medo das pessoas. Alguém que bate na mesa e fala, “vou te dar uma arma, vou botar ordem na casa”. Discurso sedutor que inunda o debate público de preconceitos.
O PSDB já trabalha com um possível segundo turno entre a direita e a extrema-direita. A fragmentação da esquerda não pode ser um tiro no pé?
O PSDB trabalha sempre com cenários otimistas demais pra quem perdeu as quatro últimas eleições presidenciais. É um partido que tá com uma popularidade na lama, que teve o Aécio como candidato — basta dizer isso. Não acredito que povo vai colocar dois Temer no segundo turno. Quando coloquei no debate sobre os 50 tons de Temer, é a expressão disso. PSDB, MDB, Bolsonaro e outras candidaturas desse campo, todas ajudaram a colocar o Temer no governo, o mais impopular da história. Ajudaram a aprovar as reformas que o povo rejeita em bloco.
O Temer está no poder também pelas mãos do PT. Foi um erro de avaliação Dilma tê-lo como vice?
A gente sempre fez essa crítica ao PT, que perdeu a oportunidade de fazer uma profunda reforma política ao optar por governar com os mesmos que corrompem o Estado há tanto tempo. Sarney, Renan, Jucá, Temer. Poderia, sim, ter construído governabilidade sem eles, ainda mais com o apoio popular que teve no governo Lula.
Mas teria chegado ao poder em primeiro lugar se tivesse descartado essas alianças?
Acredito que sim. Por isso dizemos de maneira clara: vamos pela primeira vez em 30 anos pôr o MDB na oposição. E não só. O Centrão, que na verdade é um direitão, é a turma do Cunha, a forma fisiológica de fazer política. Nunca elegeu presidente, mas está em todos os governos. Achamos lamentável reproduzir as velhas práticas e não entender o que aconteceu no país. [O PT] voltar a se aliar com Eunício [Oliveira, senador do MDB], como fazcol no Ceará… Voltar a fazer aliança com esse pessoal é não aprender com as lições do golpe.
Você inclui nos “50 tons de Temer” seus rivais Alckmin, Marina, Bolsonaro, Meirelles, Alvaro Dias. Poupa Ciro Gomes. Lula fez bem ao manobrar para isolá-lo?
Não posso inventar fatos. Ciro se opôs ao golpe, às medidas do Temer. Agora, minhas diferenças com ele estão postas. Uma delas é o modelo de desenvolvimento. Não achamos que basta crescer. O período de maior crescimento brasileiro nos últimos 50 anos? O milagre econômico. Na ditadura. E com concentração de renda, devastação ambiental. O nosso modelo é com distribuição de renda e sustentabilidade, não com o agronegócio envenenando nossa comida e passando por cima das florestas. O Ciro tem a Kátia Abreu, do agronegócio, de vice. Já eu, a [indígena] Sonia Guajajara.
E aí voltamos à polarização. O agronegócio tem um poder eleitoral forte. Esse tipo de discurso não fecha canais de diálogo?
Quero dialogar com o campo. Mais de 70% de todos os empregos gerados ali são dos pequenos produtores.
O senhor já disse que concederia o perdão presidencial a Lula. Colocaria a mão no fogo por ele?
Isso é uma forma de colocar [o assunto] que mais parece pegadinha. Num Estado de Direito não se condena sem provas. Lula o foi sem apresentação de nenhuma. Enquanto isso, Temer está solto com provas contundentes, vídeos, com um braço direito dele com mala de dinheiro na calçada. O Estado agiu de forma profundamente partidarizada. Combate à corrupção todo mundo quer. Agora, com respeito a garantias constitucionais. Pega os casos do PSDB. Parece que existe uma imunidade tucana no Brasil. E o juiz Sergio Moro é parte disso.
Como seria sua relação com o Judiciário caso fosse eleito?
Poder que se autorregula não dá certo em nenhum lugar, só combina com ditadura. Vamos propor ouvidoria externa, mandatos para juízes… Essa coisa oligárquica, como mandato no STF até 75 anos, não combina com democracia. E não vai ter juiz com auxílio-paletó, auxílio-moradia, auxílio-viagem para Miami.
No PT, Haddad assumir o lugar de Lula não é questão se, mas de quando. Concorda com postergar essa troca o quanto der?
É uma estratégia que cabe ao PT. Nós seguimos com uma posição clara, a de defesa da democracia, de Lula poder se candidatar.
Chegou-se a dizer, em eleições municipais, que Haddad tinha chance em São Paulo por ser “o mais tucano dos petistas”.
Tenho respeito pelo Haddad — e diferenças também. Não vou falar de características pessoais dele, mas de projetos políticos. Nossa candidatura é aquela que se dispõe a enfrentar de verdade privilégios.
E a capacidade do ex-prefeito de se conectar com o povo?
Há 17 anos, eu convivo com o povo mais pobre nas periferias. Não só nas ocupações do MTST, mas onde moro, no Campo Limpo, bairro da periferia de São Paulo. Tenho ouvido aberto ao que o povo diz e às demandas populares. Acho que por vezes falta, sim, a certos setores da esquerda a humildade de pisar no barro, escutar mais e doutrinar menos. Fica a dica.
O senhor foi viver com 19 anos num acampamento de sem-teto. Critica-se muito a chamada “esquerda caviar”, que prega de seus apartamentos na Gávea carioca, nos Jardins paulistanos. Falta coerência entre discurso e hábitos?
Não coloco minha trajetória como modelo para ninguém, não tenho essa arrogância. O que acha melhor, que quem esteja na Gávea apoie Bolsonaro ou um projeto que defenda a igualdade? Isso me lembra um grupo que está conosco na campanha, os Policiais Antifascistas. Algumas pessoas questionavam: mas são policiais! Opa, mas tem que ser fascista? Quero mais policiais antifascistas, mais Paulas Lavignes no meio artístico, mais gente que se posicione contra os privilégios. Não é um problema, muito pelo contrário.
O senhor vem da classe média alta, mas seu modo de vida é modesto. Por que optar por um ensino privado para suas filhas pago pelos seus pais, e não uma escola pública?
Moro no Campo Limpo, meu único patrimônio é um Celta 2010 com mais de 100 mil km rodados. Tenho um estilo de vida absolutamente compatível com as minhas necessidades e com aquilo em que acredito. Existe um problema crônico das periferias deste país: não existe creche e escola infantil em tempo integral. Hoje como candidato, e já antes disso, fico o dia todo fora de casa. Minha companheira também: estuda, milita, trabalha. Único serviço educacional integral na periferia é particular. E por isso minhas filhas estão numa escola infantil particular. Exatamente por isso nosso governo vai fazer escola e creche em tempo integral, para que os trabalhadores da periferia.
A mesma ONU lembrada por militantes da esquerda pela decisão pró-Lula denuncia as crises humanitárias na Venezuela e na Nicarágua. O senhor já frisou que esses países são democracias, e não ditaduras. Por quê?
Em ambos os casos, foram governos eleitos em pleitos reconhecidos inclusive por organismos internacionais. Tivemos o José Luis Rodríguez [ex-presidente espanhol] como observador internacional, insuspeito de ser bolivariano, e que atestou que eleição na Venezuela foi feita com lisura. Concordar ou não com o governo não lhe dá o direito de tratá-lo como ditadura. Defendemos uma solução pacífica e negociada. Não podemos admitir que volte para a América Latina o fantasma sombrio de intervenção estrangeira. Quando o secretário de Estado norte-americano insinua intervenção militar na Venezuela, é perigosíssimo. Quando imprensa trata atentado com drone contra o presidente [Nicolás Maduro] como suposto atentado, é muito preocupante. Agora, não sou candidato a presidente desses países, sou candidato a presidente do Brasil.
Mas como presidente o senhor teria que ter um posicionamento diplomático sobre o tema. E entidades internacionais, como a Humans Right Watch, já pressionaram o Brasil para levar Maduro para um tribunal internacional.
Gostaria também que se dispusessem a chamar o Trump, que deixa crianças em gaiola separadas dos pais nas fronteiras, ou o Bush, o senhor da guerra. É curioso como se trata com dois pesos e duas medidas. Essa velha política de falar grosso com a gente e fino com os EUA.
A sua candidatura existe para marcar posição? O senhor está com 1% nas pesquisas, e nada indica reviravolta dessas proporções no quadro eleitoral…
Não é apenas candidatura para marcar posição. Queremos, sim, vitória. Essa é a eleição mais imprevisível dos últimos 30 anos. Pesquisas mostram quase 60% do eleitorado que não sabe dizer, na espontânea, em quem vão votar, ou votam branco/nulo. Existe espaço, sim, para um projeto que não tem medo de dizer seu nome.
A última eleição tão imprevisível desde o Brasil redemocratizado foi em 1989. O senhor por vezes é comparado ao Lula daquela época. O que acha disso?
Tenho respeito pela trajetória do Lula, alguém que veio de baixo. Essa comparação ocorre porque estou construindo minha trajetória também a partir da luta social, numa relação direta com o povo. Agora, a história não se repete. O Lula 89 enfrentava determinados desafios. A democracia que estava nascendo em 1989 e está falida em 2018. Temos um novo desafio, de refundação democrática.
Com informações do Jornal Folha de São Paulo