O domingo foi de impasse sobre a prisão e a soltura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), preso desde 7 de abril na sede da Polícia Federal (PF) do Paraná, em Curitiba. Um novo pedido de habeas corpus em favor Lula acabou desencadeando uma série de decisões “estranhas e incorretas” da Justiça brasileira neste domingo, avaliam juristas ouvidos pela BBC Brasil.
Depois de muita indefinição, o petista foi mantido preso em Curitiba, onde cumpre pena de 12 anos e um mês de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso Tríplex do Guarujá. Tudo começou com uma inesperada determinação do desembargador que estava de plantão no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), Rogerio Favreto, para a imediata soltura de Lula, ao atender recurso apresentado por três parlamentares petistas. A decisão veio depois de o Supremo Tribunal Federal ter autorizado a detenção do ex-presidente em abril.
O movimento de Favreto gerou imediata reação do juiz de Curitiba Sergio Moro, responsável pela condenação do petista em primeira instância, que resolveu se manifestar mesmo estando de férias para afrontar decisão de instância superior. Logo depois, o relator do processo de Lula no TRF-4, Pedro Gebran Neto, suspendeu a decisão de seu colega plantonista, embora a princípio tivesse jurisdição para analisar o caso apenas na segunda-feira, quando terminasse o plantão. Com isso, Favreto reafirmou sua decisão e determinou mais uma vez a liberdade de Lula.
Em meio ao impasse gerado por decisões de dois desembargadores de um mesmo tribunal, sobrou para o presidente do TRF-4, Thompson Flores, resolver a disputa: ele manteve a prisão afirmando que o pedido de habeas corpus de Lula é do desembargador João Pedro Gebran Neto, e não de Favreto.
“Isso (as sucessivas decisões) mostra aos olhos de todos que há uma insegurança jurídica generalizada. A cada dia, a cada momento, você é surpreendido por decisões ora contra, ora a favor, ora incompatíveis”, criticou o advogado criminalista Gustavo Badaró, professor de Processo Penal da USP.
Já o professor da FGV Direito Rio Ivar Hartmann avaliou as decisões de Favreto, Moro e Gebran Neto, como “tecnicamente erradas” e criticou também os aliados de Lula que teriam ingressado, na sua visão, com um habeas corpus ilegal no TRF-4. Entenda melhor quais as controvérsias em torno das decisões desse domingo.
1ª decisão: plantonista manda soltar Lula
Três deputados federais petistas – Wadih Damous, Paulo Teixeira e Paulo Pimenta – entraram com um novo pedido de habeas corpus na noite de sexta-feira no Tribunal Regional Federal da 4ª região. Para os juristas ouvidos pela BBC Brasil, os parlamentares parecem ter estrategicamente escolhido apresentar o recurso sabendo que o desembargador de plantão seria “ideologicamente favorável” ao pedido. Favreto, que tem sido crítico à Operação Lava Jato, já foi filiado ao PT antes de se tornar juiz, segundo o Jornal Folha de São Paulo.
À BBC Brasil, o desembargador negou que tenha agido por motivação política e defendeu sua decisão afirmando que a pré-candidatura de Lula à Presidência da República seria um “fato novo” que justificaria libertá-lo agora. Em seu despacho, Favreto argumentou que o petista seria vítima de “duplo cerceamento de liberdade: direito próprio e individual como cidadão de aguardar a conclusão do julgamento em liberdade e, direito político de privação de participação do processo democrático das eleições nacionais, seja nos atos internos partidários, seja na ações de pré-campanha”.
Para Badaró, da USP, a decisão “forçou a barra”. “O fato de Lula se tornar pré-candidato não é um fato novo que incida sobre o conteúdo daquilo que decidiu o tribunal quando determinou a prisão”, argumenta o professor. Já na avaliação de Hartmann, Favreto deveria ter rejeitado o pedido porque o TRF-4 não seria a instância adequada para o novo recurso.
Segundo o professor da FGV, o habeas corpus apresentado era ilegal porque, ao contestar a prisão de Lula autorizada pelo TRF-4, teria que ser apresentado à instância superior, ou seja, o Superior Tribunal de Justiça. “Claramente o pedido não devia ser encaminhado para o TRF-4 e vemos uma estratégia de fazer o pedido justamente no fim de semana em que o plantonista é o juiz Rogério Favreto”, observou. “Acho que foi uma jogada inteligente dos aliados de Lula porque sabiam que, se conseguissem a soltura hoje, para conseguir a volta da prisão depois seria mais difícil politicamente”, acrescentou.
Já o deputado petista Wadih Damous contestou a crítica de Hartmann e disse à BBC Brasil que o habeas corpus foi apresentado contra a decisão de Moro de decretar a prisão de Lula em abril e que, por isso, o TRF-4 seria sim o foro adequado para apreciar o recurso.
Vale lembrar que a oitava turma do TRF-4, após confirmar a condenação de Lula por Moro em janeiro, autorizou o petista a ser preso pelo juiz de Curitiba assim que se esgotassem os recursos da defesa na segunda instância, o que foi feito em abril. Essa autorização teve respaldo em jurisprudência do STF que permitiu, a partir de 2016, o cumprimento antecipado da pena, ou seja, antes do esgotamento de todos os recursos disponíveis para a defesa.
2ª decisão: Moro desautoriza soltura de Lula
Pouco depois da primeira decisão, Moro, mesmo estando de férias, liberou um despacho dizendo que Favreto não seria competente para julgar o recurso de Lula e determinou que ele não fosse solto até que o relator do caso no TRF-4, o desembargador Gebran Neto, se manifestasse – o que acabou ocorrendo pouco depois, com uma decisão para suspender a ordem de soltura. Para Hartmann, Moro não poderia ter tomado essa decisão. Segundo ele, Moro, por ser um juiz de primeira instância, não poderia intervir no cumprimento da decisão de um desembargador, mesmo se não estivesse de férias.
Na sua avaliação, a Polícia Federal poderia ter ignorado o despacho do juiz de Curitiba e aplicado a decisão de Favreto, que tinha sim competência para julgar enquanto estava no plantão judiciário. “Acho que tanto Gebran como Moro viram uma jogada estratégica dos parlamentares (que entraram com o pedido de habeas corpus) e decidiram agir para evitar o custo político que a soltura de Lula traria para o próprio Judiciário, ainda que erroneamente”, analisa.
“Moro errou ao atravessar essa decisão que não tinha nada a ver com ele. Ele fez para criar uma celeuma, ganhar tempo e chamar o Gebran para se manifestar”, acredita também Badaró. A decisão de Moro acabou dando gás para a defesa de Lula voltar a questionar sua imparcialidade nos processos contra o petista. “O juiz de primeira instância Sergio Moro, em férias e atualmente sem jurisdição no processo, autuou decisivamente para impedir o cumprimento da ordem de soltura emitida por um Desembargador Federal do TRF4 em favor de Lula, direcionando o caso para outro Desembargador Federal do mesmo Tribunal que não poderia atuar neste domingo”, criticou por meio de nota o advogado de Lula Cristiano Zanin.
3ª decisão: relator suspende soltura de Lula
Após o despacho de Moro convocando seu pronunciamento, Gebran Neto determinou que Lula deveria ser mantido preso. No despacho, argumentou que a “decisão proferida em caráter de plantão poderia ser revista por mim, juiz natural para este processo, em qualquer momento”. A decisão é controversa, no entanto, porque o plantão judiciário terminaria às 11 horas de segunda, quando só então o relator teria jurisdição para revogar a decisão do plantonista, ressaltaram Badaró e Hartmann.
“É um decisão excepcional. O relator poderia revogar a decisão, mas apenas amanhã (segunda). Imagina, caso fosse o Zé da esquina preso porque roubou o celular de alguém, se o desembargador iria sair domingo do descanso dele para decidir”, disse o professor da USP.
O impasse acabou resolvido com a decisão do presidente do TRF-4, Thompson Flores. Contrariando a opinião dos dois professores ouvidos pela BBC Brasil, ele decidiu que a competência para julgar o pedido de habeas corpus de Lula é do desembargador João Pedro Gebran Neto, e não de Favreto. Flores também restaurou a validade de uma decisão anterior de Gebran, tomada por volta das 14h de domingo, determinando a manutenção da prisão de Lula. Na decisão, Flores argumenta que Favreto não tinha competência para julgar pedidos de Lula, por não ter participado da sessão que decidiu pela prisão do petista; e que não havia fato novo em relação aos pedidos anteriores de soltura do petista.
O saldo geral acabou negativo para a imagem do Judiciário, acredita Daniela Bonaccorsi, professora de Direito Penal na PUC de Minas Gerais. “A gente já sabia que a política entrou no Judiciário, comprometendo a legitimidade das decisões. Entendo que agora há um problema ainda maior, não só de disputa política, mas de disputa pessoal entre os juízes”, lamenta.
Com informações da BBC Brasil