A exposição Agora Somos Todxs Negrxs? busca questionar as estruturas da sociedade brasileira a partir de diversos elementos históricos e simbólicos, começando pelas próprias normas gramaticais. “Há uma emergência dessa discussão como uma emergência social, que coincide não só com a produção da arte negra, mas também com o debate de uma arte feminista, que envolve gênero e transgênero. Então, nesse sentido, a gente adota esse novo vocabulário do X, desafiando a questão de gênero no próprio vocabulário, na própria gramática”, diz Daniel Lima, curador da esposição, aberta esta semana na sede da Videobrasil, na Vila Leopoldina, zona oeste da capital paulista.
Os trabalhos foram selecionados a partir do acervo da Associação Cultural Videobrasil, que acumula as obras e publicações do festival realizado a cada dois anos, desde 1983. Lima explorou a coleção a partir da presença dos artistas negros. Segundo ele, entre mais de 1,2 mil autores, apenas 20 eram negros. “O primeiro disparador é olhar nesse acervo de mais de 30 anos qual é a presença negra, não como assunto, como temática, mas como produção, perspectiva”, explica sobre o processo de criação da exposição.
A investigação começa com Alma no olho (1973), em que Zózimo Bulbul é ator e diretor em um vídeo que fala sobre a colonização e a diáspora africana. “O Zózimo Bubul é a semente performática negra que tem na exposição”, diz o curador sobre a importância da obra na construção da mostra. Bulbul participou do movimento do Cinema Novo e, entre outras marcas na carreira, foi, em 1969, o primeiro protagonista negro em uma telenovela.
Geração conectada
As conexões entre os artistas se estabelecem, segundo Lima, pelo próprio diálogo que existe entre eles. “Essa nova geração de artistas negros, de arte contemporânea, surge nas últimas décadas no Brasil de forma muito articulada. É muito diferente de décadas anteriores, que tinham artistas negros expressivos, mas sem uma articulação, um grupo de colaboração, de conhecimento e contaminação mútua da produção”, comenta.
Esses artistas que, mesmo quando não se conhecem pessoalmente, trocam experiências pelas redes sociais, apresentam, de acordo com o curador, “a denúncia da falência de um mundo. O Brasil teve a maior escravidão do planeta e, hoje em dia, colhe os frutos mais bizarros dessa grande violência”, afirma Lima ao citar diversos dados que embasam sua visão.
Ele relaciona, por exemplo, o fato de o Brasil ser o país com o maior número de homicídios do mundo – “a grande maioria é de jovens negros” – com o tamanho da frota de carros blindados, também recorde mundial. “Veículos protegidos como se estivessem em uma guerra. São números de guerra, que ultrapassam os números da Síria”, afirma.
Essa análise de mundo está presente em Invasão, etnocídio, democracia racial e apropriação cultural (2016), de Jaime Lauriano. Aqui, o artista trabalha a partir da estética das cartas náuticas, navegações ibéricas. Porém, em vez do colorido dos mapas originais, Lauriano usa linhas brancas traçadas com giz de pemba sobre fundo negro, com expressões que abordam diretamente a violência dos processos. “É uma peça central porque todo o discurso tem a ver com descolonização do pensamento, da forma de pensar e da construção desse conhecimento, da legitimação dessa produção”, comenta o curador.
Para Lima, essa desconstrução do pensamento colonizado e eurocentrado faz parte do papel da arte contemporânea em propor um novo mundo. “Uma proposição de formas de enxergar a nossa realidade. Formas de, ao mesmo tempo, denunciar esses traumas da sociedade e anunciar um novo mundo. É esse poder que a arte pode ter”.