Tem causado polêmica os decretos editados por prefeitos para flexibilizar as regras de isolamento social impostas pelo Executivo estadual. Alguns prefeitos do Estado de São Paulo, na contramão da decisão do Governador João Doria, pretendem editar medidas com escopo de flexibilizar as regras de isolamento social inicialmente impostas para seus munícipes. Os chefes do Poder Executivo local pautam suas decisões no artigo 30 da Constituição da República e na decisão recente do Supremo Tribunal Federal (15/4).

Em condições normais, é perfeitamente possível o chefe do executivo municipal flexibilizar as restrições de isolamento social, tendo em vista a autonomia do Município assegurada pelo princípio federativo e os comandos constitucionais que delegam poderes para legislar sobre assunto de interesse local e para cuidar da saúde e assistência pública. Contudo, estamos em situação de normalidade? Certamente não.

Em tempos de disseminação descontrolada de um vírus mortal, pode o prefeito flexibilizar regras de isolamento social, no afã de agradar empresários locais, pondo em risco a saúde pública, com base nessa atribuição constitucional? Absolutamente não.

A Constituição atribui aos Municípios a competência para ordenar as atividades econômicas em território, bem como a execução do Sistema Único de Saúde. Entretanto, duas perguntas têm que ser feita: essa autonomia é absoluta? Em tempos de pandemia o Prefeito, no afã de agradar os empresários locais, poderia por em risco a saúde pública com base nessa atribuição constitucional?

É estreme de dúvida que o artigo 30, incisos I e V, da Constituição preveem que compete ao município editar normas e regular a atividade em seus territórios, concedendo alvarás de funcionamento, fiscalizando as atividades, estabelecendo horários de funcionamento, dentre outras atribuições constitucionais. Isso o mais neófito dos estudantes de direito tem a consciência da distribuição administrativa de competência entre os três entes da federação.

Mas essa autonomia subsiste ao momento de calamidade sanitária nacional e mundial? O prefeito, a seu bel prazer, pode, como diria Bolsonaro, com uma “canetada” determinar que sejam estabelecidas a normalidade da vida comercial em suas cidades, colocando em risco seus munícipes?

De outra banda, poderia o Governador de Estado, determinar o isolamento social, com o fechamento de todo comercio não essencial nos 645 municípios do Estado de São Paulo?

Por obvio estamos diante de um dilema legal e moral: analisando-se friamente a constituição federal, sem adentrar a questão da pandemia, afigura-se aberrante o Governador ordenar, como um imperador, que os municípios sigam suas determinações, quanto a organização da vida em sociedade local, regulando o funcionamento do comércio, etc.

No entanto, em um momento de pandemia, aonde não se sabe ao certo o alcance e letalidade do vírus, o Governador, como autoridade máxima do Estado, objetivando preservar vidas, pode impor que o comércio de determinado município permaneça fechado, mesmo que o prefeito decrete de forma diversa, na medida em que está em jogo a vida humana, que suplanta, abissalmente, o interesse econômico local.

Muitos dirão que a estagnação do comércio gerará o desemprego e, por conseguinte, um problema social que refletirá na saúde. Mas, diversamente dessa colocação, os grandes cientistas do mundo, e não os oportunistas de plantão, entendem que o isolamento social pode favorecer o achatamento da curva e, com isso, possibilitar que haja, brevemente, uma flexibilização paulatina, com a retomada da vida comercial.

Ademais, retomando a questão central qual a autonomia municipal, o Supremo Tribunal Federal, no último dia 15 de abril, referendar a medida cautelar na Ação Direita de Inconstitucionalidade promovida pelo Partido Democrático Trabalhista – PDT, estabelecendo duas importantes implicações: 1) estabelece que a União, através do Presidente da República, não pode editar decreto flexibilizar, deliberadamente, sem anuência dos Estados e Municípios o isolamento social horizontal; 2) os municípios, embora tenham autonomia constitucional para gerir os assuntos locais, devem, nesse momento de caos sanitários de âmbito nacional, tomar suas decisões em consonância com as diretrizes estaduais e do Ministério da Saúde.

Na prática, a decisão do STF autorizou Municípios e Estados a “desobedecerem” a União no caso concreto do Covid-19. E, o raciocínio inverso vale? Ou seja, pode o Município (ab)usar de sua competência para desobedecer o comando de isolamento social imposto pelo executivo Estadual? Certamente não.

Nesse caso, até mesmo a competência do governador deve ser mitigada. Explicamos: se a União impor regras de isolamento para tentar conter a pandemia de escala global, não pode o Estado fazer o contrário. Isso porque o centro axiológico do sistema constitucional contemporâneo preconiza a observância à dignidade humana, razão pela qual tanto o ordenamento jurídico quanto a sociedade devem engendrar esforços para, prioritariamente, garantir a manutenção da vida e a proteção do ser humano, em notório detrimento a questões de ordem econômica.

Os prefeitos, governadores e até mesmo o Presidente – esse acredito impossível – devem se unir e em uma só voz, pautados na ciência e deixar a política de lado, em buscar uma solução concreta, real e factível no combate a Covid-19. Vivemos em um momento de grande consternação mundial e cabe aqui, como luva de mão certa, a fala do Papa Francisco: “O risco é ser golpeado por um vírus ainda pior, o do egoísmo e da indiferença”.

Por Marcelo Aith* e Marcio Limão**

*Marcelo Aith é especialista em Direito Criminal e Direito Público e professor de Direito Penal na Escola Paulista de Direito.

**Marcio Limão é jornalista e advogado com pós-graduação em Direito Eleitoral e em Marketing Político