O presidente Michel Temer vai transferir para a iniciativa privada a responsabilidade de executar obras consideradas estratégicas. A seis meses do fim de seu governo, Temer não conseguiu entregar os projetos que propôs para o setor ferroviário. Concessionárias de ferrovias poderão renovar contratos que vencem em meados da próxima década por mais 30 anos (ficariam vigentes até 2057). Em troca, as empresas vão construir outras ferrovias que serão, posteriormente, licitadas pelo governo. Como contrapartida, a União abrirá mão de outorgas.
Dois projetos dessa natureza devem ser anunciados nesta segunda-feira, 2, na reunião do Conselho do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI): a Ferrovia de Integração Centro-Oeste (Fico), que será construída pela Vale, e o Ferroanel de São Paulo, pela MRS Logística. O investimento total será de R$ 9 bilhões, num prazo de até cinco anos. Depois de prontas, as ferrovias serão licitadas.
Programada inicialmente para ligar os estados de Goiás e Rondônia, uma extensão de 1.641 quilômetros, a Fico ficou menor. A linha a ser entregue pela Vale ao Estado terá 383 quilômetros e vai conectar Água Boa, no Mato Grosso, a Campinorte, em Goiás. O governo mudou de ideia porque pretende abastecer com carga a Ferrovia Norte-Sul (entre Porto Nacional, no Tocantins, e Estrela d’Oeste, em São Paulo, obra realizada pelo governo e que irá a leilão no segundo semestre). Além de exigir investimento menor, a nova ferrovia vai oferecer ao Mato Grosso, maior estado produtor de grãos, uma alternativa de transporte de carga ferroviária. Atualmente, há apenas a Ferronorte (operada pela Rumo, ex-ALL) até o porto.
A Vale gastará R$ 4 bilhões para construir a Fico e renovar, antecipadamente, os contratos de concessão das estradas de ferro Carajás e Vitória-Minas. O valor foi definido depois de um acerto de contas entre o governo e a companhia, considerando o que ela já investiu na sua malha e o que teria de pagar a título de outorga. Foram descontados do montante os valores investidos na duplicação da linha férrea de Carajás. É suficiente para construir a ferrovia, segundo cálculos do governo. O empreendimento já tem projeto básico, licença prévia e os estudos de viabilidade econômica e ambiental foram aprovados pelo Tribunal de Contas da União (TCU).
Alternativa para driblar fragilidade fiscal
A cargo da MRS, o Ferroanel de São Paulo será um ramal ferroviário de 53 quilômetros de extensão e interligará as estações de Perus (São Paulo) e Manoel Feio (Itaquaquecetuba), em área contígua ao traçado do rodoanel. Um dos principais benefícios da obra, orçada em R$ 5 bilhões, é a redução de conflitos urbanos. Hoje, os trens de carga compartilham os mesmos trilhos da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). Embora o Ferroanel tenha uma extensão bem inferior à da Fico, o custo é mais elevado por se tratar de obra urbana (com túneis, pontes e viadutos).
Segundo Tarcísio Freitas, secretário de Coordenação de Projetos do PPI, o projeto da Fico entra em consulta pública pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) neste mês e, depois, será enviado ao TCU, que tem participado do processo de discussão. Em agosto, será a vez do Ferroanel seguir o mesmo trâmite.
Para Claudio Frishtak, sócio da consultoria Inter B., ao condicionar a renovação das concessões a investimentos em outras ferrovias, o governo vai conseguir deslanchar projetos que não conseguiria executar devido a sua fragilidade fiscal e gestão ineficiente. Ele avalia que, para estabilizar a dívida pública, a União teria que poupar cerca de R$ 300 bilhões, praticamente inviabilizando qualquer investimento relevante por pelo menos mais um mandato presidencial.
“Mesmo que o próximo governo reduza incentivos fiscais, faça a reforma da Previdência e adote outras medidas de ajuste, não vai sobrar dinheiro suficiente para investimento. Além disso, o setor privado tem melhor capacidade de gestão. Mesmo o bom gestor público encontra muitas restrições dos órgãos de controle, o que acaba dificultando os investimentos”, afirma o economista, especialista em infraestrutura.
Procurada, a Vale confirmou o interesse da companhia na renovação das concessões, mas disse que aguardará o anúncio da Fico para comentar o projeto. O diretor de Relações Institucionais da MRS, Gustavo Bambini, afirmou que a empresa está negociando com o governo a construção do Ferroanel de São Paulo. Segundo ele, a renovação dos contratos é importante porque qualquer investimento de maior porte da empresa não será amortizado em um prazo inferior a oito anos.
Em outra frente, o governo discute a renovação de contratos com outras concessionárias. A discussão com a Rumo está mais avançada. O projeto já passou pela fase de consulta pública e está prestes a ser enviado ao TCU. Neste caso, a concessionária investirá na própria malha o equivalente a R$ 5 bilhões. Também está na mesa a negociação com a concessionária da Ferrovia Centro-Atlântica (FCA), a VLI, que ficará responsável por construir uma nova ferrovia, entre Vitória e Rio. Como as discussões ainda estão no início, não haverá prazo hábil para renovar a concessão este ano.
Segundo Freitas, a renovação de contratos é vantajosa para o país porque os contratos atuais têm falhas e não obrigam o concessionário a investir nem na própria malha em itens de segurança, necessários para reduzir conflitos urbanos. Isso fica a cargo do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), que enfrenta falta de recursos.
Gatilhos para investimentos
Com a renovação, as concessionárias passarão a ter gatilhos — a partir de um determinado volume de cargas transportadas, elas terão de fazer novas obras. Dessa forma, é possível ampliar a capacidade da estrada de ferro não só para a frota própria, mas também para terceiros, o que é conhecido no jargão do setor como direito de passagem. “Os contratos serão completamente reformulados. A ideia é criar um círculo virtuoso do setor, com a volta dos investimentos”, afirmou Freitas.
O professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Armando Castelar, avalia positivamente o aumento da participação de ferrovias na matriz de transporte, em que as rodovias respondem por 65%. O assunto ganhou destaque este ano depois que a greve de dez dias dos caminhoneiros causou uma crise de desabastecimento no país em maio. Até hoje, ainda não há uma definição para a tabela de frete do setor, o que causa impacto no volume transportado nas estradas. Citando dados do Banco Mundial, Castelar afirma que o país pode economizar 0,7% do Produto Interno Bruto (PIB) por ano se conseguir transportar mais cargas por trens. “O aumento da participação da malha ferroviária vai reduzir significativamente o custo do transporte, a emissão de gás carbônico e os acidentes no trânsito”.
Durante a reunião do PPI, o governo vai aprovar o Plano Nacional de Logística (PNL), segundo o qual, a renovação antecipada das cinco concessões e a conclusão das licitações (Norte-Sul, Ferrogrão e Fiol) anunciadas pelo governo têm potencial para reduzir o custo do frete no Brasil em R$ 33 bilhões por ano. A queda seria reflexo do aumento da participação das ferrovias na matriz de transporte para 31%. Temer, contudo, somente deve conceder a Norte-Sul.
O diretor da Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF), Fernando Paes, chamou a atenção para a trajetória de queda dos investimentos públicos no setor. Ele observou que os concessionários privados investiram R$ 40 bilhões nas ferrovias desde 1997. Mas, com a proximidade do encerramento dos contratos, a tendência é que eles deixem de investir porque não há tempo hábil de amortização. A renovação antecipada vai trazer para o setor R$ 12 bilhões nos próximos dez anos, de acordo com dados da FGV. “Esse é o valor do ganho ou da perda, caso o governo decida esperar o vencimento das concessões. A nossa expectativa é que os contratos sejam renovados este ano. Do ponto de vista técnico, está tudo pronto”, disse Paes.
Com informações do Jornal O Globo