Animais poderão, no futuro, ser a principal fonte de transplantes de órgãos para humanos. Em um estudo publicado na revista Nature, pesquisadores de Cambridge, nos Estados Unidos, descrevem um macaco que sobreviveu por dois anos com rins retirados de porcos. No primeiro experimento do grupo, a taxa de sobrevivência foi de dois dias. O que possibilitou a longevidade foi uma tecnologia de edição genética que aumentou a compatibilidade entre as diferentes espécies, aliada a um medicamento imunossupressor.

A expectativa é de que, um dia, a estratégia seja bem-sucedida para reduzir a longa espera de humanos por um órgão vital. No último ano, houve avanços nos chamados xenotransplantes (entre diferentes espécies), com rins e corações de porcos transplantados em pessoas por cientistas das Universidades de Maryland e do Centro Médico NYU Langone, mas as técnicas ainda são embrionárias.

No caso dos rins, os três receptores estavam mortos e foram mantidos por aparelhos, para verificar a viabilidade do procedimento. O primeiro homem a receber um coração sobreviveu dois meses após a operação e morreu infectado por um vírus que estava no organismo do animal. Há um mês, a Universidade de Maryland realizou um transplante coronariano no qual um paciente também já com morte cerebral recebeu o órgão de um porco.

Tanto nos experimentos anteriores com humanos quanto os com macacos, os órgãos dos doadores passaram por edição genética. No estudo atual, a ferramenta utilizada pelos cientistas foi a chamada Crispr. Com essa “tesoura”, os pesquisadores manipularam os genes dos porcos antes de transplantar para os macacos. As alterações foram feitas para prevenir a rejeição de órgãos e remover vírus que, como no paciente norte-americano que recebeu um coração de suíno, poderiam ser ativados no receptor.

Vinte e um macacos tiveram os rins removidos e receberam um único órgão, retirado do porco geneticamente modificado. Ao desativar apenas três genes que evitam a rejeição, os animais sobreviveram por 24 dias. Porém, quando os cientistas adicionaram no órgão sete proteínas humanas que reduzem a coagulação sanguínea e a inflamação — reações típicas do sistema imunológico —, eles viveram sete vezes mais (176 dias). Essa metodologia foi, então, combinada a um tratamento de imunossupressão. Um dos animais do experimento alcançou mais de dois anos (758 dias) de vida.

Ensaios clínicos

Em uma coletiva de imprensa transmitida on-line, Mike Curtis, presidente executivo da empresa de biotecnologia eGenesis, que trabalhou com a Universidade de Harvard na edição genética, destacou que a agência regulatória Food and Drug Administration (FDA) exigiu a sobrevivência dos animais de ao menos 12 meses antes de se começar um estudo com humanos. Por isso, ele acredita que, em breve, os pesquisadores receberão autorização para a primeira experiência clínica da tecnologia. Para Curtis, a quantidade de pacientes que precisam de órgãos — especialmente rins, os mais requisitados —, exige novas opções terapêuticas.

Nos Estados Unidos, contou, 89 mil pessoas aguardam um transplante renal. No Brasil, segundo o Ministério da Saúde, mais de 60 mil estão na fila e, desses, mais de 37 mil necessitam de rins. “Simplesmente não há rins suficientes para todos”, disse o presidente Mike Curtis. “Muitos morrerão em diálise. O transplante entre espécies é a única solução viável a curto prazo para resolver essa enorme escassez na disponibilidade de órgãos.”

Na coletiva de imprensa, Tatsuo Kawai, que liderou o estudo na Faculdade de Medicina de Harvard, contou que os cientistas usaram porcos miniatura de Yuacatán como doadores porque seus rins, quando maduros, têm o tamanho aproximado ao de uma pessoa adulta. Para ele, o desempenho da técnica deverá ser melhor ainda em humanos porque os órgãos são mais compatíveis com os dos suínos.

Chefe da equipe de transplantes do Centro Médico Langone da Universidade de Maryland, Muhammad M. Mohiuddin, que realizou xenotransplantes inéditos na instituição, explicou que os porcos são os doadores mais promissores “devido à disponibilidade da tecnologia necessária para modificar o seu genoma, a seu curto período de gestação, a seu rápido crescimento até um tamanho compatível com o ser humano e à semelhança anatômica de seus órgãos com os dos humanos”.

Em um editorial publicado na Nature, o cirurgião destacou que “superar a complexa rejeição dos órgãos suínos pelo sistema imunológico humano representou um desafio por mais de 40 anos”. Para Mohiuddin, a melhoria da edição genética graças à técnica Crispr e de novos imunossupressores “revigorou o campo”. “Mas serão ensaios clínicos, envolvendo pessoas que foram excluídas de todas as outras esperanças de tratamento, que realmente ampliarão nossa compreensão sobre esse procedimento notável, ajudando a perceber o potencial dessa tecnologia.”

(*)Com informação do CB