“Para o programa ser extinto,deve-se ter uma alternativa.” Com essa afirmação, o presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e secretário da Saúde de Goiás, Leonardo Vilela, saiu em defesa do Mais Médicos. O que preocupa Vilela são os desdobramentos do anúncio da ilha caribenha. “Como fazer a transição? De que forma? A população será penalizada de alguma forma? A saída abrupta e repentina deve ser pensada se não vai causar danos à população”, pondera.

Ele defende adaptações no programa. “Devem-se estabelecer critérios mais justos, definidos, para priorizar os vazios em municípios e como os serviços são prestados”, avalia. “Nos últimos anos já havia uma substituição paulatina de cubanos para brasileiros. Agora, o esvaziamento repentino não era esperado. As universidades brasileiras estão formando mais profissionais, mas substituirão os que deixarão o programa?”, explica.

São Paulo e Bahia serão os estados mais afetados pelo fim do acordo. Os paulistas têm 1.394 médicos cubanos atuando na rede pública. Os baianos, 822. Juntas, essas unidades da Federação representam 26% da participação dos cubanos no país.

O governador eleito do Espírito Santo, Renato Casagrande (PSB), teme que a eventual extinção do programa afete a prestação de serviço de saúde. “A formação acadêmica nossa é para outro tipo de demanda. É muito caro para os municípios manterem um médico brasileiro. O Mais Médicos cumpriu seu papel. Até acho que deve ser prorrogado, mas o que foi dito na campanha não deixa ambiente para isso”, pondera.

No DF, dos 133 profissionais do Mais Médicos, 20 são cubanos, segundo a Secretaria de Saúde. O governador eleito Ibaneis Rocha (MDB) encara a ruptura como mais um agravante da crise na saúde da capital federal. “Não tive conhecimento desta decisão (da saída dos médicos cubanos). Sei que vamos ter de trabalhar muito para contratar médicos e profissionais da saúde, existe hoje uma disparidade muito grande nas contratações”, alerta.

Após cinco anos de atendimento, o governo de Cuba decidiu abandonar o programa Mais Médicos. O encerramento da parceria ocorreu em consequência das críticas do presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), ao programa e ao regime de trabalho dos profissionais cubanos no país. “Isso é trabalho escravo. Não poderia compactuar”, disse Bolsonaro. O rompimento enfraquece o serviço, que dá atendimento básico de saúde a 63 milhões de brasileiros em mais de 2,8 mil municípios. Dos 18,2 mil médicos em atividade, 8,3 mil são da ilha caribenha.

Especialistas temem um colapso na atenção básica, por considerarem que o Brasil não tem condições de substituir os cubanos, que representam cerca de 45% dos profissionais engajados no programa. Em muitos dos municípios atendidos, eles são a única forma de atendimento de saúde.

O combustível para a crise foi a exigência de Bolsonaro de que os médicos passem pelo Revalida — exame aplicado a profissionais formados em medicina em instituições estrangeiras. O presidente eleito criticou também a forma de remuneração dos profissionais. Pelo acordo, o governo cubano embolsa 75% da bolsa de R$ 11 mil mensais paga pelo governo brasileiro, e os médicos que migram para o Brasil não podem trazer suas famílias.

Em comunicado, o Ministério da Saúde Pública de Cuba considerou “desrespeitosas e ameaçadoras” as declarações de Bolsonaro sobre os cubanos no Brasil. “Diante desta lamentável realidade, tomamos a decisão de não continuar participando no Programa Mais Médicos. Não é aceitável que se questionem a dignidade, o profissionalismo e o altruísmo dos colaboradores cubanos que, com o apoio de suas famílias, prestam atualmente serviços em 67 países”, destaca o documento.

Bolsonaro afirmou que o governo de Cuba decidiu sair do programa porque não aceitou as condições impostas por ele, como “aplicação de teste de capacidade e pagamento de salário integral aos profissionais cubanos”. “Condicionamos à continuidade do programa Mais Médicos à aplicação de teste de capacidade, salário integral aos profissionais cubanos, hoje na maior parte destinado à ditadura, e a liberdade para trazerem suas famílias. Infelizmente, Cuba não aceitou”, disse. Ele ainda comparou a ocupação a “trabalho escravo” e ofereceu asilo “aos que quiserem ficar”.

A participação cubana no Mais Médicos foi acertada com o Ministério da Saúde e a Organização Panamericana da Saúde (Opas). Nos cinco anos de presença no país, os profissionais da ilha fizeram cerca de 113 milhões de atendimentos.

Professor de medicina aposentado da Universidade de Brasília (UnB) e integrante do Observatório da Saúde, Flávio Goulart lamentou o risco de descontinuidade do programa. “Ele permitiu que pessoas que nunca tiveram contato com médico tivessem acesso à medicina. Esse é o lado humano. Além disso, tem o lado técnico. Onde o programa foi aplicado, há vários indicadores de melhora na atenção primária à saúde”, explica Goulart, que é doutor em saúde pública pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Para ele, o Brasil não tem condições de substituir os médicos cubanos. “O prejuízo é muito grande. O país não tem como repor esses profissionais rapidamente. As universidades têm formado mais médicos, mas o nosso processo ainda é de formar especialistas, e não profissionais que possam dar atendimento imediato”, afirma. Os locais onde os cubanos atuam foram oferecidos, antes, a médicos brasileiros, mas, em cinco anos de programa, nenhum edital conseguiu contratar essa quantidade de profissionais. O melhor resultado foi de três mil brasileiros.

“Ação despreparada”

O ex-ministro da Saúde e criador do programa na primeira gestão de Dilma Rousseff, Alexandre Padilha, lamentou o resultado político da ação de Bolsonaro. “Esses médicos estão atendendo nos sertões, na Amazônia brasileira e nas periferias de grandes cidades. Essa é uma data triste para a saúde pública e para a política externa do Brasil, provocada por uma ação despreparada e conflituosa do presidente eleito”, criticou.

O Ministério da Saúde informou que contratará profissionais brasileiros para as vagas dos cubanos. “A iniciativa imediata será a convocação nos próximos dias de um edital para médicos que queiram ocupar as vagas que serão deixadas pelos profissionais cubanos. Será respeitada a convocação prioritária dos candidatos brasileiros formados no Brasil seguida de brasileiros formados no exterior”, explicou a pasta, em nota.

Apesar da polêmica, o Mais Médicos contrata profissionais de diversas nacionalidades. Desde 2016, o Ministério da Saúde vem diminuindo a quantidade de médicos cubanos no programa. Eles chegaram a ser 11.400 profissionais.

Avaliação positiva

Um ano após a criação do programa Mais Médicos, uma pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), do Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (Ipespe) e do Ministério da Saúde mediu a aceitação da ação no país. Na época, 85% dos entrevistados, em quase 700 municípios, disseram que a qualidade do atendimento médico estava “melhor” ou “muito melhor”. Um índice alto de usuários (87%) apontou que a atenção do profissional durante a consulta melhorou, e 82% deles afirmaram que as consultas passaram a resolver melhor os seus problemas de saúde.

Cercado de polêmicas, o Mais Médicos foi lançado por Dilma Rousseff (foto) em setembro de 2013. À época, conselhos de medicina e associações médicas se manifestaram contra a criação do programa. Um dos principais pontos de polêmica foi a liberação dos médicos estrangeiros do processo de revalidação do diploma. As entidades argumentavam que a medida facilitaria a contratação de profissionais de qualidade questionável.

Além da contratação de profissionais, a iniciativa apostava na reformulação da formação médica no Brasil. Os cursos de medicina teriam mais dois anos totalmente voltados para a atuação no SUS. Além disso, seriam criadas, até 2017, 11,4 mil vagas na graduação e 12,3 mil, na residência médica.

O governo federal investiu R$ 15 bilhões na infraestrutura dos hospitais e unidades de saúde e novas contratações direcionadas para regiões que sofrem com a escassez de profissionais. Em 2013, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), mostrou que o Brasil tinha 1,8 médico por mil habitantes, atrás de países da América Latina e da Europa. A meta do governo era elevar essa proporção para 2,5. “Os médicos contratados trabalharão na periferia das grandes cidades e nos municípios do interior do país. A intenção é superar a má distribuição de profissionais pelo território nacional”, defendia a ex-presidente.

Na época, o presidente do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (CRM-SP), Renato Azevedo Júnior, publicou um artigo afirmando que a ampliação da duração do curso de medicina configurava um serviço civil compulsório para médicos, o que seria inconstitucional. “Não dá para fazer medicina sem ter infraestrutura, sem ter outros profissionais da área da saúde, sem ter acesso a um hemograma, a raio-X, medicamentos, maca, etc.”, escreveu. (OA).

Com informações Correio Brasiliense