“Fui violentada na infância por quem mais deveria me proteger, meu pai”*. A frase é um relato real, de uma vítima de abuso. Ao contrário do que possa parecer, a violência sexual contra crianças e adolescentes não é um caso isolado nem raro. O grupo, formado por ambos os sexos, de 0 a 17 anos, é o que possui o maior número de denúncias no Disque 100, serviço telefônico de recebimento, encaminhamento e monitoramento de denúncias sobre violação de direitos humanos. Conforme o Relatório 2019, divulgado pelo Governo Federal, esse grupo representa 55% do total de denúncias recebidas pelo Disque 100, sendo a violência sexual a quarta violação mais incidente, correspondendo a 11% dos registros.

De 2011 a 2018, o Balanço Geral do Disque 100 registrou mais de 191 mil queixas de violência sexual infantil, com 32 mil casos registrados no Brasil somente em 2018. Por isso, na Semana Estadual de Prevenção e Combate à Violência, ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, o Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) lança uma campanha para sensibilizar a sociedade dos deveres e proteção para com crianças e adolescentes. Realizada na segunda semana de dezembro, o evento foi criado pela Lei Estadual nº 13.997/2007, modificada posteriormente pela Lei Estadual nº 14.108/2008.

Crianças e adolescentes de ambos os sexos, com ou sem deficiências físicas ou intelectuais, podem ser vítimas de violência sexual. Condições culturais, religiosas e socioeconômicas bem como a etnia dos envolvidos são indiferentes. Os dados do Relatório 2019 do Disque 100 apontam que a violência ocorre na casa da própria vítima ou do suspeito em 73% dos registros, sendo cometida por pai ou padrasto em 40% das denúncias.

Abuso e exploração

A violência sexual envolve tanto o abuso como a exploração. A titular da 3ª Promotoria de Justiça de Quixadá, promotora de Justiça Cibelle Moreira, explica a diferença. “No abuso, o agente agressor usa criança ou adolescente para a satisfação da sua lascívia. Já na exploração sexual, o agente agressor usa criança e adolescente para a satisfação da sua lascívia em troca de remuneração ou qualquer outra vantagem”, detalha. Ambas as situações são previstas como crimes graves pela legislação brasileira, com penas que podem chegar a 30 anos de prisão.

A exploração sexual de crianças e adolescentes é crime hediondo e pode ocorrer de quatro formas: prostituição, pornografia, redes de tráfico de pessoas e turismo com motivação sexual. Além disso, em razão da gravidade e dos danos causados à vítima, também é considerado crime hediondo todo envolvimento sexual com menor de 14 anos, o que caracteriza estupro de vulnerável.

Direitos de crianças e adolescentes

A Constituição Federal de 1988 assegura a crianças e adolescentes, com absoluta prioridade, o direito à vida, à dignidade e ao respeito, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Esse dever é ratificado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o qual determina que nenhuma criança ou adolescente deve ser objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, com a devida punição na forma da lei.

Cabe ressaltar que, em 2017, foi instituída a Lei nº 13.431, que estabeleceu o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência. Com essa legislação, as vítimas ou testemunhas de violência serão ouvidos por meio de escuta especializada e depoimento especial em local apropriado e acolhedor, com infraestrutura e espaço físico que garantam privacidade.

Atuação do MPCE

De acordo com o coordenador auxiliar do Centro de Apoio Operacional da Infância, da Juventude e da Educação (Caopije), promotor de Justiça Flávio Corte, os casos de violência sexual contra crianças e adolescentes são apurados nas Promotorias Criminais e nas da Infância e Juventude. No caso de um pai que abusou de um filho, por exemplo, no aspecto criminal, o membro do MP vai processar o agressor, pedindo à Justiça medidas de proteção, como o afastamento e a prisão de quem cometeu o crime. Por sua vez, o promotor atuante na infância e juventude pode ingressar com ação para pedir a destituição do poder familiar, preocupando-se também com as condições de proteção e acolhimento da criança ou do adolescente, após a violência sofrida.

Na seara criminal, o MP participa da investigação e é responsável pelo processamento dos crimes sexuais, que tramitam em segredo de justiça. Em Fortaleza, há uma vara especializada no julgamento dos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, que é a 12ª Vara Criminal. Ao longo do ano de 2020, os promotores e promotoras de Justiça que atuaram nessa vara, por meio das 91ª e 145ª Promotorias de Justiça, já apresentaram mais de 100 denúncias. “Nossa função é buscar que os abusadores sejam punidos, com rigor e justiça. Mas, sobretudo, tentamos acolher as vítimas, tratando-as com cuidado e respeito. Nesse sentido, o depoimento especial, no qual as vítimas são ouvidas apenas por entrevistadoras forenses capacitadas, permite a escuta de crianças e adolescentes de forma mais humanizada, bem como melhora a qualidade da prova produzida”, declara o promotor de Justiça Carlos Andrade, respondendo pela 91ª Promotoria de Justiça de Fortaleza.

O acolhimento às vítimas também é feito pelo trabalho desenvolvido pelo Núcleo de Atendimento às Vítimas de Violência (Nuavv) do MPCE. De janeiro a novembro de 2020, a equipe do Nuavv atendeu 58 vítimas de crimes contra a dignidade sexual, que, na época dos fatos, eram crianças e adolescentes. “Somos uma equipe multidisciplinar. Prestamos inúmeros serviços, dentre eles a proteção à vítima de violência. Temos um ambiente apropriado, tanto para a psicoterapia como para o acolhimento da vítima. Trabalhamos com parceiros que atendem as vítimas de violência acolhidas pelo Nuavv e estamos nos capacitando para fazer a escuta especializada de crianças e adolescentes” detalha a coordenadora do Nuavv, promotora de Justiça Joseana França.

Cartilha

Para contribuir com o debate, o MPCE apresenta, ainda, a cartilha “Violência sexual contra crianças e adolescentes – O silêncio que destrói infâncias”, com o objetivo de esclarecer questões relacionadas ao abuso infantil, tais como conceitos, de que forma pode ocorrer, quem são os envolvidos e como atuar de maneira preventiva, identificando sinais de alerta. O documento foi elaborado pelo promotor de Justiça Jucelino Oliveira Soares e pelo técnico ministerial Francisco de Moraes Alencar Filho, com a colaboração do Caopije e da psicóloga do Caopije Rebeka Araújo. Acesse a cartilha na íntegra.

O titular da 3ª Promotoria de Justiça de Tauá, promotor de Justiça Jucelino Oliveira Soares, menciona sinais de alerta que podem ser apresentados por crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. “Qualquer mudança de hábito e comportamento na vida de uma criança e adolescente é relevante, não desconsidere nada. Denuncie e não se cale! Eles precisam de você!”, ressalta o membro do MPCE. Como exemplo, ele cita: mudança repentina de comportamento; medo de ficar sozinho em determinados ambientes; tensão; ansiedade; choro por qualquer motivo ou com frequência incomum; regressão ou inversão do desenvolvimento natural; dificuldade de socialização com outras pessoas; medo constante; pavor inexplicável de determinados ambientes; dificuldade de adaptação; baixo rendimento escolar; baixa autoestima; vitimização; vergonha do próprio corpo; tendência de se mutilar, se cortar ou se ferir; e, até mesmo, tentativa de suicídio.

Como denunciar?

Como a subnotificação dos casos é um dos desafios enfrentados pelas instituições que atuam na defesa da infância e da juventude, o coordenador auxiliar do Caopije, promotor de Justiça Flávio Corte, enfatiza a importância de denunciar todo tipo de violência sexual. “Se tiver conhecimento de alguma situação de violência, abuso ou exploração sexual de crianças e adolescentes, procure o Conselho Tutelar ou a Delegacia da sua cidade. Você também pode fazer a denúncia de forma anônima, para isso, basta ligar para o Disque 100 de qualquer telefone, de forma gratuita” declara Flávio Corte. O Disque 100 recebe, ainda, denúncias pelo contato de Whatsapp (61) 9656-5008. O serviço telefônico encaminha os casos para os órgãos que compõem a rede de proteção.

O MPCE também acolhe as vítimas de violência, por intermédio da atuação especializada do Nuavv. O Núcleo está localizado na Av. Cel. Philomeno Gomes, 222, bairro Luciano Cavalcante, em Fortaleza, no mesmo prédio das Promotorias de Justiça Criminais. O contato pode ser feito através do e-mail [email protected], do telefone (85) 3218-7630 e do celular institucional (85) 98563-4067. Outra opção é denunciar através da Ouvidoria-Geral do MPCE nos telefones 127, 0800 2811553, (85) 3253-1553 e (85) 3452-1562, ou no e-mail [email protected].