“Assustador”. “Preocupante”. “Problema global”. “Alerta mundial”. Esses foram alguns dos termos usados por médicos entrevistados pela BBC News Brasil para descrever o crescimento dos casos de câncer colorretal na população mais jovem, com menos de 50 anos.
O tumor, que afeta o intestino grosso (o cólon) e o reto, está entre os mais impactantes na saúde e na qualidade de vida. E, nas últimas décadas, uma tendência estranha chamou a atenção dos especialistas.
Em várias partes do mundo, os casos de câncer colorretal permaneceram relativamente estáveis entre os mais velhos — que proporcionalmente continuam a representar a maioria dos acometidos pela enfermidade.
Em números relativos, no entanto, as taxas de casos desse tumor começaram a subir com rapidez entre indivíduos com menos de 50 anos.
“Se você comparar os números atuais com a taxa que tínhamos há 30 anos, alguns trabalhos chegam a apontar um aumento de 70% na incidência de câncer colorretal em pacientes jovens”, resume o oncologista clínico Paulo Hoff, presidente da Oncologia D’Or.
Essa diferença nas estatísticas já provocou algumas mudanças de saúde pública: nos Estados Unidos, um dos primeiros países a detectar o fenômeno, a idade mínima para a realização de exames preventivos que flagram o tumor colorretal precocemente (sobre os quais falaremos adiante) caiu de 50 para 45 anos.
No Brasil, alguns dados preliminares obtidos pela reportagem também apontam para um crescimento da doença numa idade precoce.
O que dizem os números
Um relatório da Sociedade Americana de Câncer divulgado no início de 2023 calculou que 20% dos diagnósticos de tumor colorretal realizados nos EUA em 2019 aconteceram em pacientes com menos de 55 anos.
Essa taxa é o dobro do que era observado em 1995. Os autores do documento calculam que as taxas de detecção dessa enfermidade em estágio avançado cresceram cerca de 3% ao ano entre indivíduos que ainda não completaram 50 anos.
Em 2023, as estimativas americanas apontam 19,5 mil casos e 3,7 mil mortes por câncer colorretal entre os mais jovens.
Tendências parecidas foram observadas em diversos países europeus, como o Reino Unido.
A BBC News Brasil consultou o Instituto Nacional de Câncer (Inca) para descobrir se um cenário parecido também acontece no país.
Para responder os questionamentos da reportagem, a epidemiologista Marianna Cancela, pesquisadora titular da Vigilância e Análise de Situação da Coordenação de Prevenção e Vigilância (Conprev) do Inca, analisou as taxas ajustadas por idade da incidência de câncer colorretal no Brasil entre 2000 e 2017.
“No caso do câncer colorretal, é verdade que há um aumento no Brasil, mas isso ainda ocorre em todas as faixas etárias”, diz ela.
“A gente observa que, no ano 2000, havia em torno de 5 casos desse tumor por 100 mil habitantes entre homens de 20 a 49 anos. Em 2017, tivemos cerca de 6 casos. Isso é algo estatisticamente significativo”, calcula a especialista.
“Entre as mulheres mais jovens, também observamos essa tendência de aumento, mas ela ainda não é significativa do ponto de vista estatístico.”
Em outras faixas etárias — entre 50 e 59 anos e acima dos 60 anos — também há um crescimento, numa magnitude maior (uma vez que a doença se torna mais comum conforme envelhecemos).
Cancela ainda destacou duas pesquisas que ela publicou recentemente sobre o tema. Numa delas, o grupo de cientistas analisou se o Brasil será capaz de cumprir as metas da ONU de redução das mortes prematuras por câncer.
Embora em nenhum dos tumores o Brasil deva alcançar os objetivos traçados pelas Nações Unidas, a maioria deles terá uma redução significativa na mortalidade quando comparados os períodos de 2011-2015 e 2026-2030.
A única exceção da lista é justamente o câncer colorretal, que possui uma previsão de crescimento nos óbitos no futuro, tanto para homens como para mulheres.
Um segundo artigo publicado por Cancela mostra como esse tumor vem ganhando protagonismo no Brasil. Ela analisou a quantidade de anos de vida produtiva que são perdidos para vários tipos de câncer.
Entre 2001 e 2005, o câncer colorretal era o sétimo tumor mais impactante para os homens, seguindo esse critério — atrás de pulmão/traqueia; estômago; cérebro/sistema nervoso central; leucemia; boca e garganta; esôfago.
Já em 2026-2030, ele ocupará a terceira posição do ranking, perdendo apenas para estômago e pulmão/traqueia.
Entre as mulheres, os tumores colorretais estavam na sexta posição em 2001-2005 (atrás de mama; colo de útero; cérebro; pulmão; leucemia). Em 2026-2030, a doença estará no terceiro lugar (atrás apenas de mama e colo de útero).
Paulo Hoff observou uma tendência parecida do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp), do qual ele é diretor.
“Em 2019, publicamos um trabalho em que mostramos claramente um aumento substancial na chegada de pacientes mais jovens com câncer colorretal”, diz o médico, que também é professor titular de Oncologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).
“Num período de 10 anos, essa elevação tinha sido na ordem de 15%. Mas é muito provável que esse número esteja subestimado”, calcula o oncologista.
O médico Alexandre Jácome também realizou um levantamento sobre o tema na Oncoclínicas, onde ele atua como líder nacional de oncologia gastrointestinal.
“Nós não encontramos um aumento significativo da incidência desse tumor nos pacientes jovens em paralelo a uma estabilização entre os mais velhos, como acontece nos EUA”, destaca ele.
Os especialistas trabalham agora para analisar com mais profundidade todas as estatísticas disponíveis no Brasil — e avaliar se é necessário tomar alguma atitude para proteger essa população mais jovem contra o câncer colorretal.
O que explica o fenômeno?
Para o oncologista Samuel Aguiar Jr., líder do Centro de Referência de Tumores Colorretais do A.C. Camargo Cancer Center, em São Paulo, os dados representam um “alerta mundial”.
“Vemos essa realidade no nosso dia a dia, e é assustador. Já virou normal ver pessoas jovens, de 35 ou 40 anos, chegarem no consultório com o diagnóstico desse tumor”, relata ele.
“Esse cenário preocupa, pois o impacto do câncer colorretal numa pessoa jovem é muito grande”, concorda Jácome, que também é membro do Comitê de Tumores Gastrointestinais Baixos da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (Sboc).
“Falamos de indivíduos que estão na idade de se estabilizar no emprego, de casar, de ter o primeiro filho… Ou seja, há uma série de sonhos que ainda não foram realizados.”.
Mas, afinal, o que explica esse cenário? Por que os tumores colorretais estão subindo tanto entre jovens, a ponto de chamar a atenção de especialistas do mundo todo?
“Existem algumas hipóteses e teorias, mas nenhuma delas foi confirmada até o momento”, responde Hoff.
“A primeira delas está relacionada à mudança dramática que ocorreu nas últimas décadas, em que nós saímos de uma civilização agrária e rural para uma sociedade predominantemente urbana. Isso alterou vários aspectos da vida, com o avanço de uma dieta baseada em produtos ultraprocessados, com menor presença de alimentos naturais, e mais sedentarismo”, contextualiza o médico.
“Se essa hipótese se confirmar, estamos diante de um quadro alarmante, uma vez que os produtos industrializados se tornaram a base da alimentação moderna, inclusive da merenda escolar das crianças”, comenta Aguiar Jr.
Sabe-se que o sobrepeso e a obesidade são fatores que estão relacionados a esse tumor — e os quilos extras são um problema que afeta cada vez mais pessoas.
Além dos aspectos que envolvem o estilo de vida, os pesquisadores também levantam outras suspeitas.
“Também não podemos descartar o impacto de algumas práticas, como o uso indiscriminado de antibióticos, seja diretamente para tratar as pessoas ou na produção pecuária, em aves e bovinos”, destaca Jácome.
O que fazer?
Como mencionado no início da reportagem, as mudanças nas estatísticas sobre o câncer colorretal nos EUA modificaram os programas de detecção precoce no país.
A partir de 2021, as autoridades americanas passaram a indicar a realização de exames preventivos para todo mundo com mais de 45 anos — antes, esses testes eram preconizados apenas para quem estivesse acima dos 50.
No Brasil, não existe nenhum esquema público de rastreamento do câncer colorretal (como a mamografia para o câncer de mama ou o papanicolau para o câncer de útero), mas o Inca está debatendo um programa específico para essa doença, que deve ser lançado nos próximos meses.
“Eu sei que essas discussões estão ocorrendo, porque temos notado um aumento na incidência e uma necessidade de rastreamento”, diz Cancela.
No caso específico desse tumor, existem dois testes principais que podem ser utilizados: o exame de sangue oculto nas fezes e a colonoscopia.
Como o próprio nome indica, a primeira opção investiga se há sangue no cocô de um indivíduo. Embora a presença do líquido vermelho ali não seja um sinal direto de câncer (pode ser um indicativo de uma úlcera mais simples, por exemplo), ela levanta um sinal amarelo para uma investigação mais aprofundada.
Já a colonoscopia envolve inserir pelo ânus uma cânula com câmera na ponta. Essa abordagem permite que o especialista visualize em tempo real o interior do intestino e detecte algo de anormal nas paredes desse órgão.
Durante esse procedimento, também é possível remover pólipos, lesões que podem se desenvolver e virar um câncer no futuro.
Mas qual dos testes é melhor? Depende do ponto de vista.
“A colonoscopia é o exame padrão ouro, porque tem uma sensibilidade maior, ou seja, uma capacidade superior de detectar as lesões com acurácia”, aponta Jácome.
“Além disso, ela já é capaz de remover na mesma hora algumas dessas lesões”, complementa ele.
Mas existem alguns problemas aqui, como a baixa disponibilidade de equipamentos e profissionais capazes de fazer esse procedimento. Além disso, precisamos levar em conta que esse teste exige toda uma preparação, o indivíduo fica sedado por algumas horas e perde um dia de trabalho.
“É praticamente impossível para qualquer país do mundo implantar um programa de rastreamento do câncer colorretal baseado apenas na colonoscopia”, defende Hoff.
“O exame de sangue oculto nas fezes é baratíssimo, fácil de fazer e, se realizado uma vez ao ano, consegue detectar sinais precoces da doença, como sangramentos”, lista o oncologista.
“Mesmo nos grandes programas de rastreamento populacional da Europa, que oferecem gratuitamente a colonoscopia, a adesão das pessoas é baixíssima. Menos de 20% da população realiza esse exame com periodicidade”, calcula Aguiar Jr.
Seguindo essa linha de raciocínio, o que os especialistas propõem é basicamente um esquema de funil: o exame de sangue oculto nas fezes deveria ser indicado a todo mundo com mais de 45 anos, como uma espécie de triagem.
Aqueles que não apresentarem nenhuma alteração, estão liberados e voltam para um novo check-up daqui a um ano. Já os indivíduos que tiverem a presença de sangue no cocô devem ser encaminhados para uma avaliação mais aprofundada, com a colonoscopia.
“Em média, 5% da população vai ter algum achado no exame de sangue oculto nas fezes e precisará de uma colonoscopia. Ou seja, essa estratégia é capaz de adiar esse segundo exame para os 95% restantes”, estima Aguiar Jr.
E que fique claro: o achado de sangue nas fezes não significa que esses 5% estão com câncer. Isso apenas sinaliza a necessidade de uma avaliação mais aprofundada, segundo os especialistas.
Na visão dos médicos, essa seria uma maneira de economizar recursos e só fazer testes mais caros naquelas pessoas que precisam.
Um cenário (cada vez mais) otimista
Apesar da preocupação relacionada ao crescimento de casos entre os mais jovens, a boa notícia é que o prognóstico do câncer colorretal tem melhorado.
Isso só foi possível graças aos avanços nas técnicas cirúrgicas, que são a primeira escolha de tratamento nos casos iniciais. Também foram lançados remédios que ajudam a lidar com a enfermidade nos quadros mais avançados, como algumas drogas que pertencem à classe dos quimioterápicos e dos imunoterápicos.
“Quando esse tumor é detectado precocemente, as chances de cura ultrapassam os 95%”, diz Hoff.
Nos casos mais graves, em que a doença já se espalhou para outras partes do organismo num processo conhecido como metástase, a taxa de sucesso diminui — mas melhorou consideravelmente nas últimas décadas.
“Mesmo quando não é possível buscar a cura, a expectativa de vida do paciente com esse tumor é de três a quatro vezes mais alta do que tínhamos há 20 anos””, avalia Hoff.
“Nos anos 1990, ter o diagnóstico de câncer colorretal metastático era praticamente uma sentença de morte. Hoje temos um número considerável de pacientes que se curaram. Há uma mudança total de perspectiva”, diz o médico.
Por fim, Aguiar Jr. sugere que todas as pessoas fiquem atentas aos sintomas de que algo não vai bem no intestino — independentemente da idade que tenham.
“Se você está com sangue nas fezes, apresenta alguma alteração no ritmo intestinal, sofre com cólicas abdominais ou qualquer outro incômodo no sistema digestivo, é importante procurar um médico e investigar.”
“Esses sintomas não devem nunca ser negligenciados — mesmo que você seja jovem”, conclui ele.
(*)com informação do Jornal CB