O presidente Jair Bolsonaro admitiu a possibilidade de vetar trechos do Projeto de Lei 7596/2017, que criminaliza o abuso de autoridade, aprovado na Câmara, na quarta-feira, em votação simbólica (sem necessidade de os deputados registrarem os votos), poucas horas depois de ter o regime de urgência autorizado pelos parlamentares. Visto como uma ofensiva de políticos contra a Lava-Jato, o texto define 37 ações consideradas abusivas e as penas que podem levar à prisão servidores públicos dos Três Poderes, incluindo juízes, promotores e procuradores.

Segundo a Agência Brasil,Bolsonaro afirmou que receberá o projeto na próxima semana e chamará os ministros para fazer uma avaliação. “Cada um vai dar sua sugestão de sanção ou alguns vetos, e vamos tomar a decisão de forma bastante tranquila e serena”, destacou. Ele reconheceu que há servidores públicos que praticam abuso de autoridade. “Logicamente, não pode cercear os trabalhos das instituições (…), mas tem de fazer de acordo com a lei e ponto final.”

Em meio às repercussões negativas da decisão da Câmara, o partido Novo entrou, nesta quinta-feira (15/8), no Supremo Tribunal Federal (STF), com um mandado de segurança pedindo a anulação da votação simbólica, sob o argumento de que teve rejeitado pela Mesa da Casa um requerimento para que a análise da matéria fosse nominal. Além do Novo, PSL, Cidadania e PV foram contra o PL.

A iniciativa do Novo ocorreu horas depois de o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), dizer que não acreditava em “judicialização” do projeto. “O presidente da República pode sancionar ou vetar, mas eu não vi ninguém questionando o texto como um todo”, argumentou o parlamentar. “Todos os Três Poderes, se o presidente sancionar (o projeto) terão regras de abuso. A lei de abuso não é um problema para aqueles que não passam da linha do seu papel institucional.”

O ministro Gilmar Mendes, do STF, defendeu o projeto. “Agora, a reclamação normalmente é geral, por quê? Porque inexistia nos últimos tempos qualquer freio. De novo, é aquela discussão: Estado de direito é aquele em que ninguém é soberano”, frisou. “Quem exerce poder tende a dele abusar, e é para isso que precisa haver um remédio desse tipo.”

O projeto estava parado na Câmara desde 2017, ano em que recebeu o aval do Senado. A aprovação relâmpago da matéria pelos deputados, na quarta-feira, ocorreu na sequência do ataque hacker à Lava-Jato e da publicação de supostos diálogos entregues pelos cibercriminosos ao site The Intercept. As conversas indicariam parcialidade na atuação do então juiz Sérgio Moro e de procuradores da Lava-Jato, como o coordenador da força-tarefa em Curitiba, Deltan Dallagnol.

Subjetividade

Em postagem no Twitter, Dallagnol condenou publicamente a aprovação. Ele compartilhou a publicação do procurador Wellington Saraiva, do Ministério Público Federal (MPF), mencionando que o projeto prevê detenção de até quatro anos para juiz que deixar de substituir prisão por medida cautelar diversa, “quando manifestamente cabível”. “Conceito excessivamente aberto e subjetivo, para intimidar o #Judiciário”, emendou Saraiva. Dallagnol comentou: “Se isso é crime, deveria ser igualmente crime soltar preso ou deixar de decretar a prisão quando esta é necessária. Do modo como está, juízes que prenderem poderosos agirão debaixo da preocupação de serem punidos quando um tribunal deles discordar. E direito não é matemática…”, escreveu.

Nesta quinta-feira (15/8), o ministro Sérgio Moro defendeu que Bolsonaro vete dispositivos da matéria. Em resposta a questionamentos da imprensa, disse que o projeto “precisa ser bem analisado para verificar se não pode prejudicar a atuação regular de juízes, procuradores e policiais”. Ele acrescentou que “ninguém é a favor de abusos”.

O presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), Fábio George Cruz da Nóbrega, alertou que o projeto inibe as investigações. “Isso pode, sim, atingir casos em curso, casos complexos, operações, inclusive, que envolvem o combate à corrupção, na medida em que conceitos muito abertos, muito subjetivos passam a caracterizar abuso de autoridade”, argumentou.

A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) se manifestou em nota: “A necessária punição a quem atue com abuso de autoridade não pode servir, sob qualquer pretexto, a intimidar ou de qualquer forma subtrair a independência do Poder Judiciário e seus juízes, que tanto realizam no combate à corrupção, na garantia dos direitos fundamentais e na consolidação da democracia”.

A AMB e a Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (Amaerj) pedirão, juntas, que Bolsonaro vete o projeto. “As Associações centrarão esforços, junto à Casa Civil e à Presidência da República, para obtenção de veto ao PL 7596/17, por entender que a aprovação do projeto deu-se em momento de instabilidade e sem debate necessário que permitisse aprimorar ainda mais o texto”, diz um trecho do comunicado.

O presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), Fernando Mendes, entende que o texto gera interpretações subjetivas que podem cercear o trabalho dos magistrados. “Se o juiz dá uma decisão e essa decisão estiver errada, pode ser revista do ponto de vista recursal. Isso nós fazemos todos os dias, faz parte da atividade jurídica. O que o juiz não pode é ser punido por decidir de uma maneira que amanhã ou depois venha a ser modificada”, afirmou.

 

A proposta

O que configura crime de autoridade:

 

  • Obter prova em procedimento de investigação por meio ilícito – Pena prevista: 1 a 4 anos;
  • Pedir a instauração de investigação contra pessoa, mesmo sem indícios de prática de crime – Pena prevista: 6 meses a 2 anos;
  • Divulgar gravação sem relação com as provas que se pretende produzir em investigação, expondo a intimidade dos investigados – Pena prevista: de 1 a 4 anos;
  • Estender a investigação de forma injustificad – Pena prevista: 6 meses a 2 anos;
  • Negar acesso ao investigado ou a seu advogado a inquérito ou outros procedimentos de investigação penal – Pena prevista: 6 meses a 2 anos;
  • Decretar medida de privação da liberdade de forma expressamente contrária às situações previstas em lei – Pena prevista: 1 a 4 anos;
  • Decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado de forma manifestamente descabida ou sem prévia intimação de comparecimento ao juízo: Pena prevista: 1 a 4 anos;
  • Executar captura, prisão ou busca e apreensão de pessoa  que não esteja em situação de flagrante delito ou sem  ordem escrita de autoridade judiciária – Pena prevista: 1 a 4 anos;
  • Constranger preso com violência, grave ameaça ou redução da capacidade de resistência – Pena prevista: 1 a 4 anos;
  • Deixar, sem justificativa, de comunicar a prisão em flagrante à Justiça no prazo legal – Pena prevista: 6 meses a 2 anos;
  • Submeter preso ao uso de algemas quando estiver claro  que não há resistência à prisão, ameaça de fuga ou risco à integridade física do preso: Pena prevista: 6 meses a 2 anos;
  • Manter homens e mulheres presos na mesma cela – Pena prevista: 1 a 4 anos
  • Invadir ou entrar clandestinamente em imóvel sem  determinação judicial – Pena prevista: 1 a 4 anos;
  • Decretar, em processo judicial, a indisponibilidade de  ativos financeiros em quantia muito maior do que o valor  estimado para a quitação da dívida – Pena prevista: 1 a 4 anos;
  • Demora “demasiada e injustificada” no exame de processo  de que tenha requerido vista em órgão colegiado, com o  intuito de atrasar o andamento ou retardar o julgamento – Pena prevista: 6 meses a 2 anos;
  • Antecipar o responsável pelas investigações, por meio de  comunicação, inclusive rede social, atribuição de culpa  antes de concluídas as apurações e formalizada a acusação – Pena prevista: 6 meses a 2 anos;

 

Quem pode ser enquadrado

De acordo com o texto, os seguintes agentes públicos poderão responder por abuso de autoridade:

  • Servidores públicos e militares
  • Integrantes do Poder Legislativo (deputados e senadores, por exemplo, no nível federal)
  • Integrantes do Poder Executivo (presidente da República, governadores, prefeitos)
  • Integrantes do Poder Judiciário (juízes de primeira instância, desembargadores de tribunais, ministros de tribunais superiores)
  • Integrantes do Ministério Público (procuradores e promotores)
  • Integrantes de tribunais e conselhos de conta (ministros do TCU e integrantes de TCEs)