Assustada ao saber que o filho de 16 anos, apreendido por roubo de celular, tinha discutido com o companheiro de alojamento numa unidade para jovens infratores do Distrito Federal, Karina Aparecida dos Santos Rabelo conta que só se tranquilizou após ser informada pelos funcionários que o garoto, em breve, seria trocado de local. Ao final da visita, numa quarta-feira do mês passado, a mulher repetiu o que vinha martelando nos últimos dois anos, desde que o menino começou a usar drogas.

— Eu disse para ele: meu filho, eu louvo a Deus o fato de você estar aqui, não é por maldade, mas para você poder refletir. Aqui eu sei que você não está na rua, aqui você está seguro. Era o que eu pensava — diz Karina, de 42 anos, com lágrimas nos olhos.

Horas depois do fim da visita, o garoto foi enforcado pelo colega de quarto até morrer. A esperança de ver o filho melhorar com a internação se transformou em desespero. O menino faz parte de uma tragédia recorrente no Brasil.

Em 2018, um adolescente morreu a cada oito dias, em média, dentro de unidades socioeducativas, segundo levantamento feito pelo GLOBO. Foram 26 mortes somente nos primeiros sete meses do ano, seguindo tendência verificada em 2017, quando houve 42 vítimas, o equivalente também a uma ocorrência a cada oito dias.

Cerca de 54% das mortes deste ano foram classificadas como homicídios, 3,8% como suicídios e há 42,3% ainda a esclarecer. A maioria dos assassinatos ocorre, segundo os dados oficiais, em “conflitos”, como motins ou brigas. Facções começam a proliferar nesses estabelecimentos, sobretudo no Nordeste.Para Acassio de Souza, representante da Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (Anced), o quadro atual é resultado da incapacidade de os estados estabelecerem programas e rotinas de fato socioeducativas. A estimativa é que hoje cerca de 25 mil adolescentes estejam em privação de liberdade.

— O Estado é responsável por garantir a vida e a integridade física de todos os adolescentes que estão sob sua custódia. A incapacidade de enfrentar o ingresso das facções no sistema socioeducativo não pode ser álibi para o poder público se desresponsabilizar — diz.

Ele afirma que a taxa de mortes no sistema socioeducativo (14,3 por 10 mil internos) é maior que no sistema prisional (8,4 por 10 mil presos), segundo dados oficiais de 2016, os mais recentes para os dois universos (adolescentes e adultos).

Nenhuma região do país escapa à matança. Em 2018, onze estados, do Amazonas ao Rio Grande do Sul, registraram mortes. A maioria ocorreu em Goiás, onde um incêndio, cujas circunstâncias ainda não foram esclarecidas, fez dez vítimas que cumpriam medida de internação numa unidade de Goiânia.

SUPERLOTAÇÃO

As péssimas condições dos estabelecimentos para menores infratores já fizeram do Brasil alvo de medidas da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e levaram o Ministério Público Federal (MPF) a acionar governos estaduais, como o Ceará, onde sete jovens morreram desde novembro.

— O sistema está em desacordo com a lei, com problemas estruturais, violações de direitos de toda ordem — diz a procuradora do MPF Deborah Duprat, que fez visitas a unidades socioeducativas.

Os números levantados pelo GLOBO apontam que há superlotação em pelo menos doze estados. Quatro unidades da Federação, entre elas o Rio de Janeiro, não repassaram dados sobre a ocupação do sistema socioeducativo. Além da falta de vagas, os centros de recuperação exibem outros problemas típicos das prisões brasileiras, como deficit de servidores, denúncias de violência, falta de assistência básica em educação e saúde.

Até mesmo em centros considerados modelo, a estrutura é típica de prisão. Numa unidade na periferia de Brasília, atrás de uma grossa grade azul trancada, com roupas penduradas num varal e água armazenada numa garrafa pet, o garoto de 16 anos conta o que o levou até lá pela terceira vez: assalto a casa de “um polícia civil”. A série de roubos começou aos 13, quando experimentou maconha e rohypnol, um tranquilizante usado com bebida alcoólica:

— Dava vontade de fumar maconha, eu não tinha dinheiro e ia roubar.

Internado no centro socioeducativo há mais de um ano, o adolescente relata as oportunidades que perdeu, como um curso de informática pago pelo pai, pedreiro, e um gratuito de espanhol no qual a família o matriculou. Fingindo ir para as aulas, o menino se juntava a amigos para usar drogas e praticar furtos e roubos. A motivação, admite, era ter dinheiro.

—A gente queria bancar as meninas, levar no shopping. Mas hoje eu vejo que meu pai estava certo, que não existe dinheiro fácil — analisa, acrescentando: — Se eu tivesse ouvido ele, não estaria aqui. Ele é esforçado, trabalha o dia inteiro como pedreiro e faz EJA (educação para jovens e adultos). Minha mãe está agora cuidando da minha avó que está com câncer.

Promotor de justiça responsável pela execução de medidas socioeducativas em Brasília, Márcio Costa de Almeida diz que a estrutura prisional, como a presença de grades nos chamados alojamentos, muitas vezes é necessária dentro de estabelecimentos do tipo.

Ele aponta, entretanto, que o maior problema é a falta de condições adequadas, tanto materiais quanto pedagógicas, para implementar corretamente a medida socioeducativa, o que dificilmente é garantido pelos gestores públicos.

— A medida socioeducativa só será eficiente se for atraente, bem aplicada. Tem que ter colchão bom, tem que ter uma escola boa lá dentro, profissionais motivados. Só assim você consegue, além da ressocialização, distensionar o ambiente para evitar, inclusive, as mortes — diz Almeida.

Diretor da unidade socioeducativa em Brasília visitada pelo GLOBO, Antonio Raimundo dos Santos, com experiência de 24 anos no sistema para jovens infratores, concorda com o promotor. Segundo ele, é preciso garantir dentro dos estabelecimentos uma escola que realmente funcione, bons cursos extra-classe conectados com os anseios e necessidades dos jovens e os atendimentos básicos de saúde, alimentação, higiene. 

Os problemas não são poucos, aponta Antonio. Na unidade que dirige, por exemplo, faltam agentes socioeducativos em número suficiente e alguns atendimentos, como o psiquiátrico, são ofertados com a ajuda de voluntários. Mas ele destaca as diferentes oficinas, a rotina escolar e o ambulatório de saúde bem equipado como avanços do local, considerado um dos melhores de Brasília.- O gestor tem que correr atrás, porque se for esperar tudo do governo só vai ficar reclamando. Existe uma visão errada, até mesmo de servidores, de que estamos buscando privilégios para os adolescentes – afirma Antonio, arrematando o pensamento:

— Mas se a lei diz que eles precisam ter um bom atendimento, vamos tentar garantir isso. Se os meninos estiverem bem, os servidores também estarão. Deixar todo mundo trancado é fácil, difícil é colocá-los para fazer as atividades, se desenvolver — afirma.

Apesar da estrutura diferenciada, a unidade não está imune às mortes. No início de 2017, um adolescente perdeu a vida dentro do estabelecimento. Antonio diz que o ideal era que os internos ocupassem celas individuais, o que não é possível por falta de espaço. Dessa forma, ele acredita que mortes seriam evitadas.

A Secretaria de Políticas para Crianças, Adolescentes e Juventude do DF (Secriança) informou que o caso do filho de Karina Aparecida dos Santos Rabelo “está em apuração para que as circunstâncias sejam esclarecidas”, sem comentar as circunstâncias questionadas, como a discussão da vítima com o colega que o assassinou, seu quadro de saúde e a previsão de trocá-lo de alojamento.

A pasta destacou que “as unidades de internação do DF se encontram de acordo com as normas estabelecidas pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, e que o processo de ressocialização dos adolescentes inclui a convivência com outros jovens em alojamentos compartilhados, para contribuir com o desenvolvimento social do interno”.

Além disso, a secretaria afirmou que desde 2017 fez 605 nomeações, entre agentes, especialistas e técnicos socioeducativos e que todas as unidades “contam com circuitos de câmeras, que auxiliam no monitoramento da segurança de adolescentes e servidores”.

Pouco mais de um mês após perder um dos quatro filhos, morto dentro de uma unidade para jovens infratores, Karina Aparecida dos Santos Rabelo ainda tenta entender o que aconteceu. O lugar que ela imaginou seguro e transformador para o garoto de 16 anos, apreendido por roubo, foi exatamente onde ele morreu, enforcado pelo companheiro de alojamento com quem havia se desentendido.

— Foi uma morte anunciada. A própria funcionária disse que eles tinham discutido e que já iam mesmo mudar meu filho de lá, que ele ia para o módulo 2. Podiam ter evitado. Era um menino que estava em depressão, tomando remédio — conta Karina.

As perguntas que passaram pela cabeça dela, ao receber a notícia da morte do garoto, no dia seguinte ao tê-lo visitado quando soube da briga, continuam sem resposta:

— Como um menino enforca o outro e ninguém vê? Não tinha vigilância? Não tem câmera? Eu não acreditei quando a funcionária foi até minha casa dar a notícia.

O segundo filho mais novo de Karina tinha 14 anos quando começou a usar maconha, rohypnol (tranquilizante ingerido por adolescentes com álcool) e passar boa parte do tempo na rua. Mas nunca levou droga para casa, conta ela. A irmã e tia do garoto, Alexandra dos Santos, é categórica:

— Ele era um menino dócil, bom dentro de casa. Podia aprontar na rua, mas com a gente era obediente, não levantava a voz, era tranquilo. Ele respeitava o ambiente de casa.

O garoto foi apreendido três vezes por furtos e roubos, chegou a ficar internado por poucos dias. Na quarta ocorrência, foi sentenciado para cumprir medida socioeducativa em privação de liberdade. Cerca de dois meses depois, morreria assassinado no centro de recuperação, no mês passado.

A morte do garoto, que corria para a cama da mãe assim que o padrasto se levantava dizendo que só conseguia dormir bem junto dela, deixou um vazio na casa da família, em Brazlândia, cidade do Distrito Federal a 50 Km de Brasília. O menino tinha tatuado o nome de Karina no braço com a figura de uma coroa e a chamava de “minha rainha”, uma homenagem comum entre internos dos centros socioeducativos da capital federal.

— Ele era o filho mais carinhoso, me abraçava, me beijava, dizia que me amava. Eu pensei, de coração, que o tempo lá dentro iria fazer bem para o meu filho — diz Karina, com o olhar distante e a foto do menino no colo.

A decisão do juiz de internar seu caçula de 13 anos por assalto deixou a mãe, Lucimar Barbosa de Sousa, aliviada de certa forma. Apesar do coração apertado em ver o filho sendo recolhido após a audiência, ela imaginou que era o melhor naquele momento para o garoto, envolvido com venda de drogas.

— Cheguei a comentar com o pai dele que ali pelo menos ele estaria guardado em vez de estar na rua. Mas… ai meu Deus, como eu estava errada, achando que lá dentro era seguro — diz Lucimar.

No 13º dia de internação do adolescente, o telefone tocou com a notícia que mãe nenhuma quer receber: o filho havia sido assassinado dentro do alojamento em um centro socioeducativo do Distrito Federal. Teve o pescoço quebrado, em 2014.

Lucimar, de 41 anos, que ganha a vida fazendo faxina como diarista, afirma que o filho mudou em questão de oito meses. Foi o tempo em que o garoto passou a andar com pessoas que vendiam drogas e cometeu dois assaltos. No segundo, a um posto de gasolina, foi apreendido.

— Eu sempre dei conselho para ficar longe de droga, de crime. Brigava. Mas parece que ele queria ser igual a esses meninos, ia muito pela cabeça dos outros. Agora está esse vazio. Tem hora que eu penso que ele vai chegar aqui em casa — diz Lucimar.

Uma das irmãs, Carolina, lembra do garoto como um menino atencioso. Conta que ele fazia comida para ela quando estava de resguardo após ter filho. 

A outra irmã, Camila, enfatiza que ele tinha só 13 anos:

— Morreu novo demais. Nem deu tempo de se tornar uma pessoa ruim. Claro que o que ele fez merecia uma punição. Todos estão ali para pagar a sua pena. Mas vai pagar com a vida? — questiona Camila.

 

Com informações O Globo