Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) obtidos pelo Estado mostram que há 564.198 mandados de prisão expedidos aguardando cumprimento no Brasil. Esse total supera a quantidade de vagas oficialmente existentes nos presídios: 376.669, de acordo com o último balanço do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), publicado em 2014. Se os mandados fossem cumpridos de uma só vez, seria preciso ocupar todas essas vagas e ainda criar mais 50% para abrigar somente esses réus.
Uma pessoa pode ter mais de um pedido de prisão contra si, e o CNJ não faz esse filtro para selecionar os mandados contra o mesmo réu. Mesmo assim, o juiz Douglas Martins considera que bastaria o cumprimento de uma pequena parcela para deixar o sistema penitenciário “ainda mais inviável”.
Martins, que coordenou o Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Educativas do CNJ entre 2013 e 2014, disse que os dados apontam um “modelo penal fracassado”. “O nosso sistema penitenciário já é inviável, com o aumento natural da população carcerária que temos ano a ano. Digamos que, desses 560 mil mandados, fossem cumpridos 100 mil, tornaria ainda mais inviável.” A superlotação de presídios é apontada como um dos gargalos do sistema penitenciário e um fator que contribui para fugas e crises, como a que acontece há duas semanas no presídio de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte, além de massacres, como os da prisão potiguar, Manaus e Boa Vista.
O Tribunal de Justiça de São Paulo é o que tem o maior número absoluto de mandados expedidos – 175.219 –, seguido de Minas Gerais (49.425), Rio (44.607) e Pernambuco (36.925). Os dados constam do Banco Nacional de Mandados de Prisão do CNJ.
O subprocurador-geral da República Mario Bonsaglia, coordenador da Câmara de Sistema Prisional e Controle Externo da Atividade Policial do Ministério Público Federal (MPF), diz que os números de mandados “falam por si sós sobre a caótica situação do sistema prisional brasileiro” e “evidenciam que há um problema de política criminal e não apenas de política prisional”.
Bonsaglia atua pelo MPF no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e afirma que é comum chegarem pedidos de habeas corpus para autores de crimes que poderiam ter obtido a aplicação de pena restritiva de direitos, em vez de regime fechado, se os tribunais regionais aplicassem a jurisprudência das cortes superiores.
“Especialmente no atual contexto brasileiro, não há por que confinar em prisões promíscuas e sob influência ou mesmo controle de organizações criminosas autores de pequenos delitos, primários e com bons antecedentes, que possam fazer jus aos benefícios previstos nas leis e na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) e do STJ”, afirma Bonsaglia.
No caso do Rio Grande do Norte, que tem vivenciado uma série de motins em Alcaçuz, há 11.029 mandados de prisão aguardando cumprimento. A comparação com o número de presos registrado pelo Depen, 7.658, mostra que lá há mais foragidos do que presos.
Membro e ex-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, André Kehdi avalia que o número de mandados em aberto representa, por um lado, a ineficiência policial e irresponsabilidade da Justiça e, por outro, a falta de vontade do Estado em cumpri-los, dada a situação de calamidade das cadeias. “Quando muito, a polícia vai no endereço indicado no processo. Na maioria dos casos, nem isso ela faz. Insere o mandado em um registro que fica no cadastro dos órgãos públicos. Aqui em São Paulo, alguém que tenha mandado de prisão vai ao Poupatempo tirar uma segunda via do RG, renovar a CNH e é preso”, disse. “O governo sabe que, se cumprir todos os mandados, não tem como dar conta. Há um faz de conta de que há justiça”, acrescenta.
Procurados. Os crimes mais recorrentes entre os registros de presos no Brasil são o tráfico de drogas (27%) e roubo (21%), de acordo com os dados do último levantamento do Departamento Nacional Penitenciário. O número de presos por crimes relacionados a drogas em 2005 era de 14% do total da massa carcerária do Brasil, mas praticamente dobrou até 2014.
“A jurisprudência do STF e do STJ admite concessão do regime inicial aberto ou semiaberto para casos de tráfico de drogas, dependendo da pena aplicada. O não acatamento desta jurisprudência dos tribunais superiores acaba fazendo que haja números significativos de pessoas condenadas por tráfico que estão cumprindo penas em prisões ou presas provisoriamente, em regime fechado, quando poderiam estar em regime aberto ou em pena alternativa”, diz o subprocurador-geral da República Mario Bonsaglia.
A pena pode ser menor, por exemplo, se o preso por tráfico não tiver associação a traficantes, se houver bons antecedentes criminais, se a quantidade de drogas for pequena. A subprocuradora-geral da República Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, coordenadora da Câmara Criminal do MPF, também defende penas alternativas. “Alguns tribunais, como o de São Paulo, costumam aplicar regime fechado direto. Os Tribunais de Justiça têm de cumprir a jurisprudência das cortes superiores.” /