O jurista Célio Borja, de 88 anos, ex-ministro da Justiça na gestão de Fernando Collor e ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), nomeado pelo então presidente José Sarney, alerta para o risco de as delações da Odebrecht serem tomadas como “verdade absoluta”, antes que as investigações prossigam. “A generalização é a salvação dos canalhas”, diz Borja. Para ele, esse clima de descrença em torno da política pode levar ao autoritarismo. “Essa confusão entre quem é sério e quem não é ajuda a inventar salvadores da pátria.”
O que mais o assombrou nessas delações da Odebrecht?
O que me assombra é que as delações estejam sendo tomadas como verdade absoluta. As delações não são prova. A responsabilidade penal depende de prova. As delações são apenas a narração de fato que pode ser criminoso ou não. Às vezes não é criminoso. Por exemplo, dizer que o candidato recebeu doações. É preciso provar que o candidato sabia que doações vinham de fonte ilícita. Mas ninguém se preocupa com isso. Pelo fato de ter sido citado em delação, ele acaba no rol dos culpados. Estão criminalizando quem não é absolutamente criminoso. E estão colocando nessa triste posição quem não tem nada a ver com isso.
Quem o senhor vê nessa situação?
Essa pergunta não se responde. Ela personaliza e eu não quero personalizar nada.
Qual caminho o senhor vê a partir das delações?
O caminho das investigações. O primeiro passo é não dar à delação o valor de prova. Ela apenas exige que a polícia investigue o fato delatado. A partir da constatação de que a delação procede, aí sim se iniciar ação penal e responsabilizar os culpados. Não se deve generalizar. A generalização é a salvação dos canalhas. Quando o sujeito que rouba diz ‘mas todo mundo rouba’, ele pensa que está atenuando a culpa dele. Não é verdade. Primeiro que nem todo mundo rouba. E se todos roubassem, deveriam ir para a cadeia e não se eximirem da cadeia porque todo mundo rouba.
O senhor acredita que este momento em que o brasileiro está descrente da política, possa abrir caminho para o autoritarismo?
Às vezes, abre mesmo. Já tivemos essa experiência. Em 1930, quando Getúlio Vargas, derrotado na eleição, promoveu uma revolução para se instalar no poder, havia grande desgosto contra aumento dos subsídios dos deputados e senadores, que era considerado escandaloso. Isso levou a certo enfraquecimento dos conceitos que se tinham dos parlamentares, não do Congresso. E naturalmente um político arguto e esperto, como era o presidente Vargas, valeu-se disso para praticamente transformar o Brasil numa ditadura. A meu ver, para evitar esse caminho, é tratar com grande cuidado essa questão da transparência. Hoje se jogam na mesma lama parlamentares corretos e decentes e os incorretos e indecentes. Se você disser que é deputado ou senador já se levanta contra você enorme suspeição. Não merece nem crédito nas lojas que vendem a prazo. Essa confusão de quem deve e quem não deve, quem é sério e quem não é, ajuda muito a inventar salvadores da pátria.
As delações mostram que a Odebrecht financiou políticos de direita e de esquerda com dinheiro de caixa 2. O sistema político atual sobrevive?
Eu acho que seria uma boa oportunidade para refazer o sistema partidário. Não é possível existirem partidos que dependem exclusivamente de dinheiro público como é o caso do fundo partidário. Ninguém sabe qual a aplicação que se faz desses recursos. É uma aberração. Não há como defender isso. Os partidos têm que depender dos seus filiados. Não pode ser dinheiro público. Estou contribuindo para partidos nos quais jamais votaria, porque o dinheiro do imposto que pago vai para eles também.
Diante das delações, o governo e o Congresso têm legitimidade para tocar as reformas que estão sendo discutidas, como a da Previdência e a trabalhista?
Têm. A legitimidade do Congresso advém da Constituição, não da nossa simpatia ou antipatia por ele. Se você não tiver Congresso, o país fica acéfalo. Isso é pior que tudo. A legitimidade é das pessoas, não da instituição. A legitimidade do Congresso vem da ordem jurídica. A legitimidade do meu mandato, se eu fosse deputado ou senador, dependeria da minha conduta, moralidade, ética funcional. Isso que é preciso distinguir. Nós estamos, por assim dizer, jogando rede que envolve todos, quando existem deputados e senadores de muito boa qualidade moral.
É possível comparar a situação brasileira à situação italiana pós-Operação Mãos Limpas?
É possível fazer comparação entre o que ocorreu na Itália e o que está acontecendo no Brasil. É perfeitamente legítimo. As coisas se parecem muito. A solução que se deu lá talvez nos sirva aqui. Uma limpeza geral nos partidos, na vida política de um modo geral e certo cuidado com o dinheiro na política.
A Operação Mãos Limpas abriu caminho para que a Itália tivesse um primeiro ministro neoliberal, o Silvio Berlusconi.
Não acredito que o Brasil siga caminho parecido. O que se passou na Itália não foi mediatamente após a Mani Pulite. Não foi consequência. Pelo contrário, foi uma reação contra as Mãos Limpas. E aqui acho que não há nenhum candidato a Berlusconi.
A eleição de 2018 está ameaçada?
De maneira nenhuma está ameaçada. Sempre se fez eleição no Brasil sem caixa 2. Eleição se fez até sem dinheiro. Eleição e dinheiro não são consectários necessários. Não é necessário que haja dinheiro para que haja campanha eleitoral. Eleição se faz gastando sola de sapato. Eleição se fazia boca a boca, de porta em porta, de pessoa a pessoa. Hoje sabe-se tudo pelas redes sociais. As redes sociais têm poder muito grande. Meus netos sabem tudo pelas redes sociais. Eu vou ler amanhã as notícias que eles têm hoje.
Organizações como Ministério Público e Judiciário vão se sobrepor às instituições políticas?
Vão se sobrepor, não tenha dúvida. Isso está demonstrado na vida atual. O que o Ministério Público e a polícia ocupam de espaço, o que fazem com as instituições, com as pessoas, nunca foi cogitado antes. Acredito que isso esteja ocorrendo por conta de um aperfeiçoamento da consciência moral. Os antigos pensadores políticos e filósofos diziam que a consciência moral evolui, se aperfeiçoa ao longo do tempo. Vamos aprendendo com nossa própria experiência e corrigindo o que estava errado. Creio que o que houve foi isso: a consciência moral do povo brasileiro evoluiu. O que se tolerava antes, não se tolera hoje. Não creio que as instituições políticas tenham enfraquecido. Enfraqueceram-se pessoas, partidos, candidatos, posições políticos. As instituições, propriamente, não se comprometeram.
Nos últimos tempos, o Supremo também assumiu outro papel.
Há muito tempo. Mas o Supremo não deve se imiscuir em política. A garantia que o povo tem que a Justiça se fará é o não envolvimento dos juízes, especialmente do Supremo, em paixões políticas. Ele pode e deve corrigir o que é contra a Constituição, o que é evidentemente imoral. Mas não se deve imiscuir em questões políticas. O Supremo vai julgar as ações penais que advirem dessas investigações. Não houve no passado nada semelhante ao peso que essas ações terão, nem o mensalão.
Com informações O Estado de São Paulo