Por Fabíola Marques


Os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Datafolha de 2019 indicam que o lugar mais perigoso para a mulher ainda é dentro de sua própria casa. É nesse local em que 42% delas afirmam ter sofrido alguma forma de violência. Contudo, o ambiente de trabalho também pode ser palco de sérias violações, já que no mesmo ano (2019), por exemplo, o assédio sexual foi tema de 4.786 processos na Justiça do Trabalho [1].


A vulnerabilidade e constante vitimização da mulher na seara laboral se verifica de diversas formas por conta da estrutura machista, sexista e patriarcal tão arraigada em nossa sociedade. No ambiente em destaque, contudo, as principais formas de violência contra as mulheres são o assédio sexual e moral.


Segundo reportagem veiculada pelo Jornal Nacional, no Brasil, as denúncias de assédio sexual feitas ao Ministério Público do Trabalho (MPT) mais que dobraram de 2022 para 2023; e os casos de assédio moral, tiveram um aumento de aproximadamente 74%. Nas duas situações, a maioria das vítimas são as mulheres [2].


A discriminação contra a mulher no ambiente de trabalho tem relação direta com as expectativas de gênero historicamente construídas e, com conceitos relativos à vida familiar e social que trazem consigo uma espécie de “inferioridade presumida”, decorrente de mitos e crenças arbitrárias.


Por tais motivos, ainda é grande a diferença de remuneração entre empregados homens e mulheres que exercem as mesmas atividades; é comum que as mulheres tenham mais dificuldades do que os homens para obter uma promoção, sobretudo nos cargos de alta hierarquia; como no geral, as mulheres ainda sofrem com a resistência de empregadores no momento da contratação por estarem em idade fértil ou por terem filhos.


A ideia da inferioridade da mulher produz consequências no mercado de trabalho por conta de práticas normalmente silenciosas perpetradas tanto por homens quanto por mulheres, que podem configurar assédio moral.


Segundo Sônia Aparecida Costa Mascaro Nascimento o assédio moral:


“[…] caracteriza-se por ser uma conduta abusiva, de natureza psicológica, que atenta contra a dignidade psíquica, de forma repetitiva e prolongada, e que expõe o trabalhador a situações humilhantes e constrangedoras, capazes de causar ofensa à personalidade, à dignidade ou à integridade psíquica, e que tenha por efeito excluir a posição do empregado no emprego ou deteriorar o ambiente de trabalho, durante a jornada de trabalho e no exercício de suas funções.”[3]


Nesse sentido, considerando a grande dificuldade em identificar, mensurar e fazer prova das ofensas à personalidade e integridade psíquica das trabalhadoras vítimas de assédio, o Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero de 2021, estabelecido pela Resolução nº 492 do CNJ aponta que “é recomendável lembrar que a ocorrência da violência ou do assédio normalmente se dá de forma clandestina, o que pode ensejar uma readequação da distribuição do ônus probatório, bem como a consideração do depoimento pessoal da vítima e da relevância de prova indiciária e indireta”.


O referido protocolo ainda salienta exemplos de hostilidade praticados no ambiente de trabalho em termos de gênero, como é o caso da:


“participação das mulheres em reuniões, a qual é cerceada por interrupções de sua fala (“manterrupting”); por explicações desnecessárias como se elas não fossem capazes de compreender (“mansplaining”); por apropriações de suas ideias que, ignoradas quando elas verbalizam, são reproduzidas por homens, que passam a receber o crédito (“bropriating”). A moral, o comportamento e a imagem das mulheres são colocados em julgamento pelos colegas de trabalho (“slut shaming”). E, para desqualificar a sanidade mental da mulher, o/a agressor/a manipula os fatos e coloca em dúvida suas queixas (“gaslighting”).”


Neste diapasão, em recente decisão proferida pela 17ª turma do TRT-2 (Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região), a desembargadora Catarina Von Zuben utilizou as diretrizes traçadas pelo Protocolo para Julgamento com Perspectivas de Gênero [4]:


“Dano moral. Tratamento vexatório de trabalhadora. Estereótipo de gênero evidenciado. Desigualdades estruturais constatadas. Aplicação da Resolução/CNJ nº 492, de 17 de março de 2023. Condenação que se mantém com majoração da indenização.”


A vítima foi ridicularizada e exposta para toda a sua equipe por não comparecer a uma reunião online devido a um mal-estar e dores de cabeça. O superior hierárquico comunicou a condição da autora para os colegas alegando se tratar de uma “desculpa” que teria gerado um “prejuízo” à equipe compromissada com os resultados do trabalho.


Isto é, o superior desacreditou a autora, publicizou sua condição e impôs o seu subjetivismo ao resto da equipe, para desmoralizar e abalar o ambiente laboral da vítima perante os demais colegas.


A desembargadora acertadamente ressaltou em sua decisão que houve evidente discriminação pautada em estereótipo de gênero, de modo que o tratamento vexatório dispendido pelo superior hierárquico contra a trabalhadora resultou no dever de indenizar.


De acordo com a decisão, a condição de mulher foi decisiva para a prática do assédio moral já que o descrédito, o tipo de tratamento e o preconceito ao apontar a mulher como “sexo frágil”, segundo testemunhas, não ocorria com os homens dentro da empresa. Por fim, conclui que “a dinâmica empresarial comprova desigualdades estruturais com o que o Judiciário não pode compactuar e deve combater”.


Apesar de o repúdio ao assédio moral e sexual ser fato notório na sociedade contemporânea, o Brasil ainda está longe de ser um país no qual as mulheres podem se sentir seguras no ambiente de trabalho ou em qualquer outro.


Nesse sentido, se faz imprescindível a observância pelos operadores do direito do Protocolo para Julgamento com Perspectivas de Gênero, de modo a evitar a revitimização das mulheres e prezar pela promoção de mecanismos reparadores que objetivam prevenir os casos de assédio e violência.
Fabíola Marques é advogada, professora da PUC na graduação e pós-graduação e sócia do escritório Abud e Marques Sociedade de Advogadas.


(*) Artigo publicado na Revista Consultor Jurídico, 9 de junho de 2023