Profissional de saúde realiza teste para o novo coronavírus em Brasília 21/04/2020 REUTERS/Ueslei Marcelino

Se, por um lado, pelo menos 11 países já iniciaram a aplicação da dose de reforço da vacina contra a Covid-19, outros 29 países têm menos de 2% da população completamente imunizada, mostra o Our World In Data. O cenário de desigualdade provocou reação da Organização Mundial de Saúde (OMS), que defende que a prioridade deve ser dada a nações que registram índices de 1% a 2% de imunizados em suas populações. A entidade classificou a estratégia como “erro”.

No caso do Brasil, a aplicação de terceira dose já iniciou em pelo menos cinco capitais, como o Rio. Especialistas ponderam que a medida é importante para tentar conter um cenário de possível explosão de casos com a variante Delta, sobretudo pelo fato de o país ainda estar com a pandemia descontrolada. Dados do consócio de imprensa do qual o GLOBO faz parte mostram que, até sexta-feira, 133.811.250 pessoas tomaram a primeira dose de uma das vacinas, o equivalente a 62,73% da população. Já 65.872.810 pessoas (30,88%) completaram o esquema vacinal, seja com as duas doses, seja com a vacina da Janssen, aplicada em dose única.

Nessa perspectiva, a desigualdade na distribuição de imunizantes — só 0,3% das doses produzidas no mundo foram para os 27 países mais pobres — deve prolongar a pandemia. Ao todo, apenas 1,8% da população de nações de baixa renda recebeu ao menos uma dose. Segundo o Our World In Data, a maior disparidade está na África, onde Tanzânia e Nigéria só aplicaram duas doses, respectivamente, em 0,5% e 1,4% da população. Enquanto isso, Israel já reforçou a imunização de pelo menos 25% dos habitantes, num exemplo seguido por Uruguai, Turquia e Chile.

— Enquanto centenas de milhões de pessoas ainda esperam pela primeira dose, alguns países ricos estão adotando doses de reforço — declarou o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, há duas semanas. — Precisamos da cooperação de todos, especialmente de um punhado de países e empresas que controlam a oferta global de vacinas.

A farmacêutica e imunologista Letícia Sarturi explica que, quanto mais o vírus é transmitido, mais é replicado dentro das células e, portanto, fica mais sujeito a mutações e que esses “erros acabam sendo vantajosos em muitos casos”. Esse cenário leva ao surgimento de cepas, que podem ser mais contagiosas e resistirem à vacinação, como a Delta:

— Enquanto há transmissão, há replicação viral, há chance de surgimento de novas variantes. Com isso, se a gente tem países que vacinaram pouco, a transmissão é alta. Mesmo os países que vacinaram muito, estão sujeitos ao surgimento de variantes que podem migrar de países vizinhos — afirma a doutora em Biociências e Fisiopatologia pela Universidade Estadual de Maringá (UEM).

Gestores criticam o fato de que, embora seja um produtor de vacinas, o país não investiu o suficiente em institutos de pesquisa para alcançar papel relevante no fornecimento de imunizantes. Nessa esteira, o vice-presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), Nésio Trindade, defende a dose de reforço, mas critica a falta de protagonismo no cenário internacional.

— O que a OMS argumenta depende de um protagonismo dos estados nacionais que são produtores de vacina.

Poderíamos, sem dúvida nenhuma, no ano passado ter dado estímulos robustos ao Butantan, por exemplo, para que ele tivesse uma capacidade duas ou três vezes maior de produzir vacinas do que a capacidade que tem hoje — argumenta. — O Brasil nesse momento tem tido um papel reduzido e em alguns casos até vergonhoso nas relações internacionais.

Conforme o anúncio do Ministério da Saúde para as doses de reforço, a previsão é distribuir 1,1 milhão vacinas na primeira quinzena de setembro e mais 1,2 milhão na segunda metade do mês. Nesse primeiro momento, idosos a partir de 70 anos e pessoas imunocomprometidas, como pacientes com câncer, HIV ou que passaram por transplante. Já em outubro, 7 milhões de pessoas devem ser contempladas e outras 1,6 milhão em novembro. Para a pasta, o quantitativo é suficiente para atender ambos os grupos.

Vacina é essencial, mas não basta
Coordenador na Rede Análise Covid-19, Isaac Schrarstzhaupt explica que é difícil traçar um modelo de quantas vidas poderiam ser salvas caso as doses de reforço fossem doadas a países pobres, com baixíssima cobertura, para imunização em massa, porque a pandemia é multifatorial. Só a vacinação, apesar de essencial, não basta.

— Temos de distribuir vacinas igualmente a todos os países e controlar a transmissão efetivamente. “Mas estão vacinados” não é uma desculpa válida para aglomerações e eventos que juntam muitas pessoas, potencialmente aumentando a transmissão, e eventos em locais fechados, sem máscara — alerta o cientista de dados.

Sanitarista da Fiocruz Brasília e membro do Observatório Covid-19 BR, Cláudio Maierovitch pondera que há casos específicos, com o do Brasil, nos quais a estratégia de focar a dose de reforço em grupos mais vulneráveis é importante para tentar conter o vírus.

— Tem países em que continuam tendo muito caso e onde está morrendo muita gente. E uma parte disso pode continuar por conta da dificuldade de atingir a imunidade dos idosos e das pessoas com imunodeficiência. Isso justifica uma campanha que eu chamaria de “cirúrgica”, ou seja, tem que convocar com precisão aqueles segmentos da população em que já se sabe que há mais risco de morte, que, com o tempo, têm uma perda da imunidade mais rápida do que todos.

Letícia Sarturi avalia que a solução para um problema global também precisa que perpassar todas as nações:

— Criar essa desigualdade vacinal é uma barreira para o fim da pandemia — resume a professora e divulgadora científica.

(*) Com informações O Globo