Até nos crimes mais graves, como homicídio, feminicídio e outros delitos dolosos contra a vida, a demora da Justiça brasileira impressiona. Nada menos que 64,5 mil processos do tipo, que chegaram ao Judiciário até 2012, permanecem sem julgamento. Diminuir o estoque dessas ações antigas era uma meta, parte da Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública (Enasp), uma articulação firmada em 2010 por diferentes órgãos no combate à violência letal. No entanto, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) já não trata mais a eliminação deste passivo como um objetivo a ser alcançado, limitando-se apenas a monitorar as ações.

 No que diz respeito à Enasp, a gestão da ministra Cármen Lúcia como presidente do CNJ repetiu a prática inaugurada por seu antecessor, ministro Ricardo Lewandowski: preferiu dar ênfase ao programa de audiências de custódia. Em 2016, Lewandowski não renovou a última meta de julgamento de casos dolosos contra a vida, que havia sido firmada para cumprimento em 2015, de julgar 80% dos processos antigos de homicídio selecionados à época. Cármen Lúcia também não estabeleceu um objetivo para 2017, mas o monitoramento continua no “processômetro”, instrumento mantido pelo CNJ para avaliar o avanço dos estados nos julgamentos. E as notícias não são boas.

 

Apenas 10,9% do estoque inicial de 72,4 mil ações penais por crimes dolosos contra a vida, iniciadas até 2012, foram julgadas. O avanço é tímido, considerando que o prazo de monitoramento se encerra em outubro deste ano.

Procurado, o CNJ apenas confirmou os dados do “processômetro”, informou que a meta não foi renovada para 2017, mas não disponibilizou ninguém para falar sobre a Enasp. Especialistas ouvidos pela reportagem fizeram um diagnóstico das causas do passivo nas varas criminais para além da falta de estrutura e de pessoal.

Para o jurista Luiz Flávio Gomes, doutor em direito penal, que foi promotor e juiz, o estoque de processos antigos é resultado, em parte, do aumento de prisões em flagrante, que têm prioridade na lista do juiz. Ele aponta consequências catastróficas para o sistema de justiça:

— A prioridade é atender ao processo do réu preso, que vai ser solto se não houver uma decisão. E hoje se prende muito em flagrante. O resultado final disso é que os processos antigos vão prescrevendo. E a prescrição é a ineficiência, a ineficácia, a pior coisa para a Justiça.

Um processo penal “antiquado” também está entre as razões da lentidão crônica, afirma Gomes. Para ele, parecido com o que ocorre na Lava-Jato com as delações premiadas e exatamente o que países como os Estados Unidos fazem, o acordo entre réu e Ministério Público, desde que homologado pela Justiça, deveria existir nos tribunais do júri, que julgam os crimes contra a vida.

Para Jayme Martins de Oliveira Neto, presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), o processo “extremamente formal e um tanto burocratizado” do tribunal do júri acaba demandando mais tempo para o julgamento:

— Num processo penal comum, vai se repetir uma vez o que foi feito na fase do inquérito policial, como ouvir testemunhas, apresentar provas. Quando vai a júri popular, isso acontecerá duas vezes, na fase instrutória e no próprio júri.

Para Martins, é preciso aproveitar a discussão no Congresso Nacional do Novo Código de Processo Penal para inserir dispositivos que modernizem a Justiça e confiram celeridade aos julgamentos.

— É possível garantir o direito à ampla defesa, ao contraditório, a recursos sem ser excessivo, porque o excesso de recursos, tal como é hoje, gera impunidade.

O presidente da AMB também aponta a escalada da violência, conjugada com a melhoria da capacidade de investigação que leva a maiores taxas de denúncias por parte do Ministério Público, como um fator que também contribui para a demanda nos tribunais:

— Numa ponta melhora, que é a investigação e a denúncia, e acaba refletindo na outra, que é o Judiciário com falta de juízes, de servidores, dentro de uma estrutura aquém do necessário, embora muitas soluções tecnológicas e esforço pessoal venham melhorando a produtividade dos tribunais.

Segundo os números mais recentes, Mato Grosso do Sul tem a melhor performance até agora, apesar de baixa: julgou 48,4% do estoque de processos antigos que tinha. Em seguida vêm Rondônia e Paraíba, com 35,7% e 28,2%, respectivamente. No outro extremo, estão Piauí, com 2,8%, Ceará, com 3,5% e Bahia, com 4,3% do passivo julgado.

RIO ESTÁ ABAIXO DA MÉDIA NACIONAL

O Rio de Janeiro está abaixo da média nacional, tendo julgado apenas 10,4% do estoque que lhe cabe, segundo os dados do CNJ. O Tribunal de Justiça do Rio informou, ao ser procurado, que o número não está correto, mas que só teria condições de fazer um levantamento mais preciso nesta semana, portanto após o fechamento da edição. Do passivo inicial no país, continuam em tramitação 64,5 mil ações penais sem que tenha havido decisão.

A Enasp começou em 2010 com a articulação do Ministério da Justiça, CNJ e Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Metas foram estabelecidas e eram renovadas, com foco em homicídios. Vários bancos de dados e diagnósticos foram construídos, a exemplo do “processômetro”, mas desde 2015 a política vem se desintegrando, em meio à escalada da violência. O Ministério da Justiça foi procurado ao longo da semana passada para falar sobre a Enasp, mas não deu qualquer retorno.

O CNMP mudou o foco da Enasp. Em vez de monitorar a evolução das investigações policiais de homicídios, por meio do “inqueritômetro” implantado no início da política, o alvo agora são os feminicídios, que também são crimes contra a vida só que mais específicos. Um cadastro nacional de violência doméstica já está funcionando com o monitoramento dos inquéritos relacionados a esse crime, mas nem todos os estados o alimentam ainda.

O procurador da República Mauricio Andreiuolo, membro auxiliar da Enasp no CNMP, diz que o “inqueritômetro” de homicídios se encerrou em 2015, quando a meta era contabilizar inquéritos iniciados até de 2010. A antiguidade do estoque foi considerada um empecilho para dar ênfase aos procedimentos atuais:

— Um acervo tão retroativo não estava comprometido com o tempo presente. Como a nossa capacidade de monitorar e induzir é limitada, optamos por focar o feminicídio, que também é um crime grave, relativamente novo na sua tipificação e que precisa de atenção.