“A organização dentro do Ceará está precisando de ajuda porque o Estado do Ceará está generalizado em guerra, meu filho. Tá em guerra. Nossos irmãos se encontram encolhidos em uma só unidade. Tem que ajudar os irmãos que se encontram dentro do Estado. [Aqueles] que estão dentro da luta, que estão morrendo, que estão botando sua vida em xeque.”

Quem fala acima é um membro do PCC (Primeiro Comando da Capital), a maior facção criminosa do país, durante uma discussão a respeito da distribuição dos lucros obtidos com atividades ilícitas em Fortaleza — palco de uma chacina ocorrida neste sábado (27), que resultou na morte de 14 pessoas.

O UOL teve acesso exclusivo a áudios enviados a um grupo de WhatsApp formado por membros cearenses do PCC (ouça os áudios abaixo). No começo deste ano, um policial obteve acesso a um celular de um integrante da facção e conseguiu copiar os arquivos do aparelho. A reportagem apurou que as forças de segurança do Estado têm conhecimento sobre o conteúdo dos áudios.

No grupo, os criminosos debatem, entre outros assuntos, a “matrícula” de menores de idade, quebrando assim uma antiga regra do PCC, a distribuição de lucros e a tomada de pontos de vendas de drogas dos rivais.

O apelo de ajuda aos “irmãos”, descrito acima, comprova que o Ceará tornou-se uma das principais frentes da guerra que opõe facções criminosas na disputa pelo controle de presídios e de pontos e rotas de tráficos de drogas e armas no país.
Em outro áudio, um membro do PCC ressalta que a facção, fundada em 1993 em um presídio de Taubaté (SP), buscar dominar o maior número possível de “quebradas” (comunidades) na capital do Ceará:

Chacina deixa 14 mortos no sábado

A madrugada de sábado (27) registrou o capítulo mais sangrento desta disputa no Ceará: atiradores da facção GDE (Guardiões do Estado) assassinaram pelo menos 14 pessoas que frequentavam uma casa de shows chamada “Forró do Gago”, na periferia da capital cearense.
Um grupo de homens fortemente armados invadiu a festa no bairro Cajazeiras e atirou contra os participantes. Mulheres são a maioria entre as vítimas. Entre os 18 feridos, um estava em estado grave até o horário das 23h deste sábado. A chacina é considerada a maior da história do Ceará.

Segundo fontes não oficiais, o evento era promovido por integrantes do CV (Comando Vermelho), que é o grupo predominante no Estado.

Nascida há dois anos, a GDE é, atualmente, aliada ao PCC no Ceará. Seus rivais são membros do Comando Vermelho e da FDN (Família do Norte).

A GDE se especializou no domínio das áreas de conjuntos habitacionais do programa do governo federal “Minha Casa Minha Vida”. A facção nasceu na região do Conjunto Palmeiras, que apresenta o pior índice de desenvolvimento humano de Fortaleza, de acordo com estudo divulgado em 2014 pela prefeitura da capital.

Horas depois da chacina, começou a circular nas redes sociais um vídeo feito por detentos de um presídio do Ceará prometendo vingança contra membros do GDE e o PCC (veja o vídeo ao final desta reportagem). Em outro vídeo, membros da GDE comemoram o “sucesso” da chacina, utilizando fotos das vítimas.

No ano passado, o Ceará registrou 5.134 assassinatos, ante 3.407 em 2016. O crescimento é de 50,7%, informou o jornal “Estado de S. Paulo”.

O maior aumento ocorreu em Fortaleza, que registrou salto de 96,4% na quantidade de homicídios. No ano passado, foram 1.978 assassinatos, contra 1.007 em 2016. Os dados confirmaram que o Estado atingiu em 2017 um número recorde de homicídios em toda a história.

Em reportagem publicada em 20 de agosto de 2017, o UOL revelou que o Ceará era um dos três Estados da região Nordeste onde a elevação do índice de homicídios estava diretamente ligada à guerra de facções.

A reportagem apurou que a avaliação de membros das forças de segurança é a de que a guerra entre facções chegou a um ponto crítico no Ceará.

“Há uma semana, mataram um integrante da FDN, aliado do CV, numa barraca da praia do Futuro. O assassinado estava cercado de seguranças”, afirmou, sob sigilo, um membro de setor de inteligência da PF (Polícia Federal), que monitora a ação de facções criminosas no Nordeste.

“Na minha avaliação, o PCC mandou avançar e o GDE está cumprindo a determinação”, afirma. “Só que o CV e a FDN têm poder de fogo para enfrentar. Então vai morrer mais bandido.”
Desde o final de 2016, o PCC entrou em guerra com o Comando Vermelho e suas facções aliadas, principalmente a FDN, a terceira maior do país, pela disputa do controle dos presídios e das rotas de tráfico em todo o Brasil.

Lamentavelmente, o Ceará vive uma guerra entre as três principais facções criminosas e o número de homicídios só vem aumentando em razão dessa disputa por pontos de tráfico”, afirmou Reginauro Sousa, presidente da APS (Associação dos Profissionais de Segurança Pública do Ceará).

PCC afrouxa regras de batismo

Em reportagem publicada em 15 de dezembro passado, o UOL mostrou que o PCC afrouxou suas regras de “batismo” para atingir a meta de 40 mil criminosos filiados em todo o país. Esse afrouxamento inclui também o batismo de menores de idade. fato que já é observado no Estado de Goiás.

“Surgiram informações de que essa facção está interessada em aumentar o seu número de filiados principalmente por estar em disputa com outros grupos criminosos em diversos Estados”, disse Flávio Werneck, vice-presidente da Fenapef (Federação Nacional de Policiais Federais).

Antes da ocorrência da chacina, o UOL havia pedido uma entrevista com o secretário André Costa, cujo assunto era a presença do PCC e de outras facções criminosas no Ceará. A assessoria preferiu enviar uma nota em que elenca estatísticas, cita algumas aquisições de equipamentos, e diz que :

“O resultado das iniciativas contra as ações criminosas foi traduzido em números para a Segurança Pública. Em 2017, foram mais de sete toneladas de drogas apreendidas, o que corresponde ao aumento de 159,7% em comparação a 2016, quando foram 2,8 toneladas. Já na quantidade de armas de fogo apreendidas, houve um aumento de 26% nas apreensões, o que totaliza 7.443 armamentos ilícitos contra 5.909 em 2016. Além disso, a SSPDS realiza, atualmente, a territorialização das equipes policiais em comunidades de Fortaleza, onde existam maiores incidências de crimes”.

A nota termina dizendo que detalhes sobre as investigações de facções são sigilosos.
“Por fim, sobre o monitoramento de organizações criminosas atuantes no Estado, a SSPDS reforça que detalhes de investigações não podem ser repassados. A atuação das Forças de Segurança no combate a essas ações ocorre de forma sigilosa, visando não comprometer o andamento dos trabalhos policiais”, diz o órgão.

Em alguns Estados, a estratégia do PCC de aumentar filiados tem sido mais bem-sucedida do que em outros. O Ceará tornou-se, justamente, um caso exemplar: por volta de março de 2015, o PCC possuía menos que 250 filiados no Estado.

Atualmente, o número é, pelo menos, dez vezes maior. “O PCC tem priorizado os Estados que estão em fronteiras, ou que possuem portos, onde a prioridade é o tráfico internacional para centros de consumo da África, Europa e Ásia”, afirma outro investigador da PF, sob anonimato.

“Esse seria o motivo de a facção não querer perder espaço e mesmo se consolidar no Ceará, onde existem dois portos importantes: Mucuripe e Pecém.”

Em uma contabilidade da facção, à qual os órgãos de segurança tiveram acesso, o PCC teria chegado a exatos 2.494 filiados cearenses no último mês de maio. É o maior contingente fora de São Paulo, berço da facção, e do Paraná.”Atualmente já seriam cerca de 3.000″, estima o investigador da PF.

‘Difícil evitar’, diz secretário da Segurança

Horas após o massacre, o secretário da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará, André Costa, afirmou em entrevista coletiva que a chacina foi um evento isolado.
“No mundo todo, tem situações em que se matam 50 pessoas, 60 pessoas em boates. É uma situação criminosa que foi organizada, que foi planejada e que veio a ser executada”, disse.

Costa negou estar havendo perda de controle do Estado com relação às facções criminosas no Ceará e comparou o episódio a situações como as que ocorrem em outros países, como os Estados Unidos.

“Não é que haja perda de controle. São ações que acontecem inclusive em outros países, como os Estados Unidos. São situações que pessoas entram em um local, tem tiroteio e se mata dezenas de pessoas. É difícil evitar e a população sabe. Mas também tem situações que a inteligência se antecipa e evita e, como evita, não vira notícia. Mas, infelizmente, veio esse fato hoje, que não se conseguiu evitar”, declarou o secretário.

 

Com informações Estadão